Correio da Cidadania

Notas sobre capitalismo e socialismo (4)

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Um capitalismo industrial e comercial subordinado, dependente e desnacionalizado, ao qual foi agregada uma fração agrícola modernizada à custa da maior parte da sociedade, tendia não só a manter, mas a agravar aquilo que alguns autores chamam de “desigualdade anacrônica”. Um dos exemplos mais característicos dessa tendência, ou da incapacidade do capitalismo brasileiro em mudar os elevados graus de desigualdade social, pode ser encontrado na crise que se seguiu ao “milagre econômico” da ditadura militar.
 
Tal milagre chegou a suscitar esperanças em setores da própria classe operária. Esta, renovada e engrossada pelos grandes contingentes de ex-agregados rurais liberados para vender sua força de trabalho nos centros urbanos, nutriu ilusões de que o processo de geração de empregos seria constante. No entanto, sendo subordinado, dependente e desnacionalizado, o milagre capitalista comandado pela ditadura foi incapaz de resistir às crises mundiais do petróleo e da dívida externa dos anos 1970 e 1980. Morreu, forçando uma retirada estratégica dos militares. E deixou como herança um desemprego de grande parte dos que haviam sido deslocados dos campos para as cidades, dando origem a uma imensa massa excluída, na qual sobressaem os sem (escola)-sem (emprego).
 
É verdade que os intelectuais desse capitalismo descarregam sobre o próprio povo brasileiro a responsabilidade por tais infortúnios. Para alguns deles, um povo mestiço, criado pela colonização lusa atrasada, jamais seria capaz de seguir os passos dos “pioneiros” norte-americanos. Para outros, ao contrário, seria justamente a mestiçagem que nos empurraria para a frente. Dizendo de outro modo, ambos acreditam que a raça é o fator decisivo para explicar os traços característicos de nosso povo e de suas classes sociais. Deixaram de lado a pesquisa histórica sobre o desenvolvimento real das forças produtivas e das relações de produção no Brasil. E chegam a explicitar que a colonização do Brasil teria sido diferente se houvesse sido realizada pelos ingleses ou pelos holandeses, a exemplo da colonização inglesa da América do Norte.
 
Com isso, por exemplo, esquecem ou encobrem os resultados da colonização inglesa na Índia e na África do Sul e da holandesa na Indonésia, diferentes da que ocorreu na América do Norte. Como já vimos, os Estados Unidos não tiveram a mesma sorte (ou azar) da Índia e do Brasil porque a Inglaterra precisava reduzir a pressão populacional dos desterrados pela criação de ovelhas e pelo desenvolvimento ainda incipiente das manufaturas. Grande parte das terras parcamente habitadas da América do Norte de então apresentavam condições para receber tais desterrados, onde podiam estabelecer-se como agricultores independentes e até copiar as novas técnicas e relações de produção que estavam sendo implantadas na metrópole. Nas colônias nortistas puderam desenvolver uma indústria local e, para completar, realizaram duas guerras revolucionárias, a de independência e a de liquidação do escravismo e implantação do trabalho assalariado em todos os Estados Unidos.
 
Assim, enquanto a burguesia norte-americana, na segunda metade do século 19, legitimava sua hegemonia econômica e social, seja em confronto aberto com a Espanha, seja disfarçadamente com a Inglaterra, a insignificante burguesia brasileira somente deu seus primeiros passos no final daquele século, com as experiências fracassadas e/ou esmagadas do Barão de Mauá e de Delmiro Gouveia. Sob influência do tratamento dado pelos latifundiários a seus agregados, nas três primeiras décadas do século 20 tal burguesia ainda se esforçava para demonstrar que reivindicações operárias não passavam de arruaças e assuntos policiais. Segundo ela, greves não deveriam fazer parte das características do povo dócil e cordial que teria, pacificamente, “conquistado” sua independência, “libertado” os escravos e “proclamado” a República.
 
É lógico que essa burguesia, subordinada aos latifundiários, não conseguia esconder totalmente a ocorrência da Confederação do Equador, dos Alfaiates, da Balaiada, das Cabanadas, de Canudos e de outras revoltas populares da história brasileira. Mas esses acontecimentos foram sempre considerados pontos fora da curva e, como tais, teriam merecido um esmagamento exemplar. Talvez por isso vários autores não se acanhem em afirmar que, no Brasil, a burguesia surgiu no século 16, e o proletariado no final do século 20.
 
Contra todas as evidências históricas, tentam justificar tal disparate citando a burguesia europeia, que teria sido forjada como classe muitos séculos antes da existência do proletariado. A verdade é que tal burguesia, embora surgindo primeiro como classe média proprietária subalterna, não dominante, só acumulou força econômica, social e política à medida que subordinou sua circulação de mercadorias ao desenvolvimento de suas manufaturas acionadas pelo trabalho assalariado. E só realizou a revolução burguesa para conquistar o poder político e exercer sua hegemonia quando seu poder econômico alcançou dimensão igual ou superior ao dos feudais.
 
Em outras palavras, os autores que eliminam as relações de produção assalariadas como base para a geração da mais-valia e a acumulação de força econômica desconhecem que, embora os habitantes dos burgos da Idade Média fossem chamados de burgueses, a burguesia somente se conformou como classe social quando o sistema de uso da força de trabalho livre pelo assalariamento se tornou predominante. Sem tal relação de produção haveria burgueses habitantes de burgos, mas não burguesia como classe social.
 
A burguesia “brasileira”, constituída em grande parte por parcelas ou frações estrangeiras e por latifundiários que aproveitaram a necessária substituição das importações para se tornarem industriais, só começou a ganhar corpo nas primeiras décadas do século 20. Nos anos 1930 e 1940, época de crise e guerra mundial, a fração nacional dessa burguesia cresceu bafejada por investimentos e financiamentos estatais, mas não chegou a ter um poder econômico e uma hegemonia que lhe permitisse substituir a classe latifundiária e as frações estrangeiras no poder politico.
 
Essa fração nacional manteve-se sempre subordinada à classe latifundiária e às frações capitalistas estrangeiras, em especial à norte-americana. Viveu sempre do acordo ou da conciliação com esses setores dominantes, tornando-se incapaz de dirigir qualquer processo real de desenvolvimento capitalista soberano. Mesmo durante a ditadura militar, que modernizou os latifúndios e transformou seus proprietários em fração agrária da burguesia, completando o processo de implantação do sistema capitalista no Brasil, a fração burguesa nacional foi incapaz de se impor. A hegemonia continuou em poder dos setores industriais e financeiros estrangeiros, enquanto os latifundiários se reorganizavam como fração agrária da burguesia.  
 
Essas características próprias da evolução da formação econômica e social brasileira causaram inúmeros embaraços aos seus estudiosos. Algumas correntes autodenominadas marxistas chegaram a admitir a existência de uma formação social feudal, tendo por base as relações de agregação aparentadas ao feudalismo. O que levou alguns a considerarem que a burguesia nacional deveria ter um papel revolucionário. Supuseram que ela poderia transformar as relações de produção (universalização do trabalho assalariado), desenvolver o capitalismo e até mesmo criar as condições para a revolução socialista depois que a revolução democrático-burguesa houvesse cumprido seu papel histórico. As diferentes alianças e a subordinação dessas correntes a setores da burguesia tinham por base esse pressuposto teórico.  
 
Outras correntes marxistas tentaram escapar desse embaraço analítico defendendo que o modo de produção dominante no Brasil teria sido escravista colonial. O que pode explicar a maior parte da sociedade brasileira até 1888, mas não o meio século seguinte em que predominou a agregação e em que, nas cidades, se disseminaram as relações monetárias para a compra e venda da força de trabalho. Para complicar, ainda houve correntes que resolveram virar Marx de cabeça para baixo e afirmar que a colonização no Brasil e nos demais países da América Latina teria sido capitalista, ou que consideravam a economia mundial uma estrutura centro-periferia que se perpetuaria, mesmo em ritmos diferentes.
 
Um estudo mais apropriado do desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos e no Brasil durante as décadas de 1970-1990 pode demonstrar com mais crueza como as tendências do capitalismo avançado, previstas por Marx, foram intensificadas, e como as características desiguais de subordinação, dependência e desnacionalização do capitalismo brasileiro se acentuaram.
 
Nos Estados Unidos surgiram corporações ainda maiores do que as multinacionais, as transnacionais. Elas utilizaram cada vez mais seu poder de monopólio e de oligopólio para eliminar a concorrência (ou competição), driblar as leis antitruste, concentrar e centralizar cada vez mais a riqueza (1% da população norte-americana detém mais riqueza do que os demais 99%), não dar qualquer atenção aos problemas ecológicos e, cada vez mais, substituir o trabalho vivo (realizado diretamente pelos homens) pelo trabalho morto (realizado por máquinas programadas), intensificando o desemprego estrutural e as pauperizações absoluta e relativa.
 
Além disso, na busca pela centralização dos capitais e pela elevação do lucro, o capitalismo norte-americano intensificou as exportações de capital, seja na forma financeira, seja na forma de transferência de plantas industriais segmentadas e/ou completas. Assim, por um lado saqueou e desindustrializou economias nacionais subordinadas aos capitais especulativos (caso do Brasil) e desindustrializou a si próprio (vide Trump). Por outro, intensificou a industrialização de países atrasados do ponto de vista capitalista, mas politicamente soberanos, criando novos concorrentes (casos da China, Índia etc.).
 
A burguesia brasileira, hegemonizada por suas frações financeira, industrial estrangeira e, crescentemente, também por sua fração agrária, em obediência às políticas neoliberais do Consenso de Washington, operou nessas mesmas décadas para fazer com que o país retornasse à posição de exportador de commodities minerais e agrícolas e de centro de transferência da riqueza nacional (expressa no produto nacional bruto) para os países capitalistas centrais.
 
O resultado, evidenciado na crise do final dos anos 1990, foi a privatização e a transferência, para outros países, de grande parte do parque industrial implantado nos anos anteriores (na prática, uma quebra ou desindustrialização industrial), a intensificação do desemprego e das desigualdades sociais, e a crescente ascensão do agronegócio, ou da fração agrária da burguesia, a uma posição hegemônica em parceria com as frações financeira e estrangeira.

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Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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