Correio da Cidadania

Notas sobre capitalismo e socialismo (2)

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O Brasil e o que hoje são os Estados Unidos da América do Norte entraram na história como colônias. De imediato tiveram similaridade nas matérias-primas produzidas para cada metrópole, mas diferenças significativas quanto à forma de ocupação populacional.

Para a Inglaterra algumas das colônias americanas deveriam ser supridoras de algodão para suas manufaturas de tecidos, enquanto outras deveriam absorver os excedentes populacionais que infestavam as cidades inglesas. Para Portugal interessava unicamente que o Brasil lhe fornecesse açúcar, ouro e as drogas do sertão nortista, e que não despovoasse a metrópole.

Assim, enquanto as colônias inglesas do sul da América do Norte e a maior parte da colônia portuguesa igualavam-se pela adoção das plantations trabalhadas por escravos, o norte da colônia inglesa diferenciava-se pela ocupação de homens livres. Grande parte desses trabalhadores livres ocupou as terras como farmers (lavradores independentes), capazes de utilizar máquinas idênticas às da metrópole, e/ou como trabalhadores assalariados.

Nas colônias inglesas e na colônia portuguesa o comunismo ou comunitarismo indígena, com sua repulsa ao escravismo e à invasão de seus territórios de caça e coleta, foi considerado uma aberração humana a ser eliminada pelos arcabuzes. Apenas no norte da colônia portuguesa (Província do Grão-Pará) ocorreu uma diferenciação pela coleta de especiarias realizada por indígenas das reduções religiosas.

Assim, com a constante destruição das tribos indígenas, a composição social das colônias inglesas sulistas comportava, além dos funcionários civis e militares da metrópole, uma classe agrária escravista, que morava em casas grandes nas próprias terras, assim como mercadores de diferentes tipos e escravos africanos. Nas colônias inglesas nortistas conformou-se, paralelamente a uma classe camponesa livre e a uma classe de trabalhadores desprovidos de propriedades, uma classe de reparadores e fabricantes de máquinas agrícolas (principalmente para a cultura do trigo), e uma classe comercial diversificada.

Já a composição social brasileira incluiu, na maior parte do território litorâneo, além dos funcionários civis e militares da metrópole, os sesmeiros, ou a classe agrária escravista que recebia da Coroa portuguesa o direito fundiário de plantar cana e tocar engenhos de açúcar, os escravos africanos e, minoritariamente, escravos indígenas, enquanto na Província do Grão-Pará, ao norte, missionários católicos e indígenas mesclavam-se no cooperativismo aparentemente comunista das reduções.

Os sesmeiros proprietários das plantations de cana e dos engenhos do Brasil tinham o dever de exportar a produção de açúcar para Portugal ou para a Holanda, em grande parte por serem financiados por comerciantes desses reinos feudais. Constituíram inicialmente a classe latifundiária, ou o estamento dos homes bons, com direito a participarem das câmaras das vilas. A eles, mais adiante, se juntaram os sesmeiros dos sertões, proprietários das fazendas de gado.

Nas plantations de algodão das colônias inglesas sulistas da América do Norte, assim como nas plantations e engenhos de cana da colônia portuguesa, do Nordeste ao Sudeste do Brasil, as relações de produção eram, pois, escravistas: os escravos eram obrigados ao trabalho nos eitos das plantações e nas fornalhas dos engenhos. Nas fazendas de gado do Brasil, porém, as relações de produção eram aparentadas às relações de produção feudais.

Os vaqueiros e os peões eram semilivres, agregados aos currais espalhados por diversos pontos das sesmarias, para criar bois de tração para as moendas e produzir couro para o ensacamento do açúcar a ser embarcado para a Europa. Embora não pertencessem à gleba, como no feudalismo, eram obrigados ao cambão (trabalho grátis em serviços do fazendeiro, idêntico à corveia), e tinham direito a parte da produção do rebanho (quarta ou quinta parte das crias).

Os latifundiários brasileiros moravam nas casas grandes das plantations. Somente constituíram outra residência nas vilas e centros urbanos desse período à medida que estes se desenvolveram. Os escravos moravam nas senzalas, enquanto os vaqueiros e peões moravam em choupanas próximas aos currais espalhados pelas fazendas. Nos centros urbanos maiores, portos para a exportação, habitavam principalmente os funcionários da Coroa portuguesa, o clero, os comerciantes e os escravos domésticos. Trabalhadores assalariados eram minoria insignificante.

As relações de produção escravistas predominantes mantiveram-se relativamente inalteradas no Brasil e nas colônias sulistas da Inglaterra por mais de dois séculos. Na segunda metade do século 18, porém, ocorreram movimentos radicalmente desencontrados nas duas colônias. No Brasil da época ministerial metropolitana de Pombal, as reduções religiosas na Província do Grão-Pará foram extintas e a escravidão foi estendida a essa região. Por outro lado, a exploração mineira das Gerais intensificou tanto a produção e o comércio de gado bovino, equino e muar quanto a produção de alimentos para as populações livres e escravas da mineração.

Aproveitando-se dessas demandas, a agregação estendeu-se, então, além do vale do São Francisco e dos pampas sulinos, pelo vale do Paraíba e ao longo das estradas reais que ligavam o sul e o nordeste da colônia às minas. Ao mesmo tempo começou a surgir a figura do posseiro, homem livre que se apropriava de terras devolutas para desenvolver atividades agrícolas.

Nas colônias inglesas, por outro lado, os escravistas sulistas e os homens livres nortistas (que também incluíam negros fugidos da escravidão sulista) uniram-se numa das primeiras guerras anticoloniais vitoriosas da história do nascente capitalismo. A Guerra de Independência, ou a Revolução Americana (1775-1783), deu surgimento aos Estados Unidos da América do Norte, com a iniciante indústria nortista desempenhando papel importante. Conformaram-se assim dois grupos de Estados independentes: os sulistas hegemonizados pela classe agrária escravista, e os nortistas hegemonizados por uma burguesia aventureira e rapace.  

Na colônia portuguesa do Brasil, porém, a independência só foi obtida na segunda década do século 19 (1822), após sufocar a Revolução Praieira e outros movimentos revolucionários independentistas. A antiga metrópole portuguesa e o novo país independente, este hegemonizado pela classe agrária escravista, passaram a ser dependentes e subordinados à Inglaterra. Esta, a maior potência capitalista e colonialista da época, procurava, contraditoriamente, dar fim ao escravismo para ampliar os mercados para seus produtos industriais.

Em meados do século 19, os latifundiários escravistas brasileiros viram-se confrontados por diversos desafios. Externamente, tiveram que enfrentar o sistema de caça da frota de guerra inglesa às naves que traficavam escravos africanos para as Américas, que repercutia negativamente no preço dos escravos contrabandeados e na oferta de novos cativos. Internamente confrontaram-se com movimentos abolicionistas, com fugas de escravos e criação de quilombos, e com rebeliões democráticas, tanto urbanas quanto rurais, como as dos cabanos e balaios.

Essa situação conflituosa obrigou o sistema imperial a criar uma Guarda Nacional, transformando os latifundiários em seus comandantes, como coronéis, majores e capitães rurais. As medidas repressivas, porém, não eram capazes de resolver o crescente problema de redução da oferta de mão de obra, o que levou os cafeicultores paulistas a introduzir a parceria em suas plantations e, depois, o colonato, com trabalhadores livres importados. Ou seja, introduziram em suas lavouras novas formas da agregação praticada até então na pecuária.

Nos Estados Unidos, os sulistas continuaram mantendo as relações escravistas de produção, ao mesmo tempo em que os estados nortistas promoviam uma rápida expansão populacional, ferroviária e agrícola das farmers para o oeste, desenvolviam suas indústrias com trabalho assalariado e tinham crescente demanda de homens livres vendedores de força de trabalho. Em consequência, as pressões para a extinção da escravatura elevaram as contradições entre os escravocratas sulistas e a burguesia nortista, contradições que desembocaram na Guerra de Secessão (1861-1865), levando à abolição revolucionária do escravismo e à predominância do trabalho assalariado em todo o território estadunidense.

Com a vitória do norte disseminou-se um desenvolvimento econômico e social tipicamente capitalista, apesar da ideologia e da discriminação racista e escravista haverem perdurado fortemente nos estados sulistas e em inúmeras camadas sociais norte-americanas, como é possível comprovar ainda hoje com os choques sangrentos em Charlottesville, na Virgínia, promovidos por supremacistas, racistas, neonazistas e outras tendências idênticas.

No Brasil, o fim do escravismo não revolucionou as relações de produção agrárias nem superou a hegemonia da classe latifundiária. Essa classe substituiu, na agricultura, as relações de produção escravistas pela agregação, que se tornou predominante, e continuou monopolizando a propriedade das terras nacionais e mantendo a hegemonia sobre o poder político. A maior parte dos antigos escravos afrodescendentes permaneceu nos latifúndios como parceiros (meeiros ou terceiros), uma relação social não-capitalista, nem escravista ou plenamente feudal. Os trabalhadores não pertenciam às glebas, como no feudalismo, mas se tornaram prisioneiros do latifúndio ao se endividarem através das ferramentas e dos alimentos que adquiriam na forma de fornecimento a ser pago aos latifundiários.

Assim, as relações de produção escravistas predominaram no campo brasileiro por mais de 350 anos. A agregação não capitalista ou pré-capitalista foi secundária até a abolição, quando se tornou predominante e perdurou até a segunda metade dos anos 1960. Só então passou a ser praticamente eliminada pela modernização capitalista da agricultura, realizada pelo regime militar.

Leia também:

Notas sobre capitalismo e socialismo (1)

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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