Correio da Cidadania

A mãe de todas as bombas

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Trump ordenou o lançamento, na divisa entre o Afeganistão e o Paquistão, daquilo que seus generais chamam de “mãe de todas as bombas”. Assim, prossegue rumo a uma nova guerra mundial, na esperança de reconquistar o domínio norte-americano sobre o globo. Por coincidência ou não, aqui no Brasil o STF autorizou a publicação das “delações premiadas” da cúpula da Odebrecht. Dentre elas se destacam as de Emílio e Marcelo Odebrecht. A do primeiro, não só pela didática, cinismo e desfaçatez com que explicou o funcionamento real do capitalismo brasileiro desde sempre, mas também por sua jactância e preconceito de classe. A outra, por sua verborragia, criação de factoides para ganhar pontos e ignorância sobre as diferenças entre ações governamentais e corrupção.   
 
É verdade que havia uma certa compreensão de que o sistema de monopólio, oligopólio e cartel dominava há muito a economia brasileira, praticando “preços administrados” acima dos preços internacionais. No entanto, a “aula” de mestre Emílio permite conhecer melhor os mecanismos aparentemente invisíveis através dos quais esse sistema funciona e determina as características particulares do capitalismo caboclo. É possível que outros “capitalismos nacionais” espalhados pelo mundo sigam caminhos parecidos, mas o nosso era, segundo ele, “extremamente eficiente”.
 
Teoricamente, os economistas explicam que “custo de produção” de obras, produtos e serviços é calculado formalmente sobre a mais-valia que esse capitalismo arranca de seus trabalhadores diretos. O preço de produção, havendo concorrência, mesmo fraca, deveria ser determinado, em geral, pelo custo mais baixo e pela demanda efetiva. Em termos concretos, porém, o preço de produção dos monopólios, oligopólios e cartéis, que limitam a concorrência, é determinado pela taxa máxima de lucro pretendida. O que só é possível com uma engenharia sofisticada de saque nos diversos sistemas geridos pelo Estado (obras, produtos e serviços públicos, tributação regressiva, dívida pública, juros, bolsas, câmbio).
 
Em outras palavras, o capital cartelizado brasileiro sempre necessitou de gestores e funcionários públicos, representantes políticos e diversos tipos de “lobistas” ou “operadores” que tivessem poder nos escaninhos de ação do Estado e se dispusessem a operar a serviço daquele capital, por uma “comissão”, ou um percentual do total estipulado. Um simples “negócio”, na visão de ambos os lados, como deixaram claro mestre Emílio e seu aluno Marcelo.


 
A parcela distribuída aos "lobistas" e “operadores”, governantes, funcionários públicos, representantes políticos, ou outros agentes, é realizada através de “Caixa 1” (rendimentos e pagamentos declarados ao fisco) ou de “Caixa 2” (rendimentos e pagamentos não declarados ao fisco), dependendo da legislação "facilitadora". Embora as coisas agora estejam embaralhadas, a legislação que permitia a contribuição empresarial às campanhas eleitorais tornava “legal” os pagamentos através do “Caixa 1”, mas criminoso os de “Caixa 2”.
 
Mestre Emílio lembra, porém, que esse aspecto “criminal” do Caixa 2 sempre foi ignorado pelas autoridades públicas (executivas, legislativas e judiciárias) e pela imprensa, desde a época do pai dele (anos 1940), embora “todo mundo” soubesse que o dinheiro de propina corria por esse canal. Assim, não é por acaso que muitos dos acusados atuais estejam fincando pé no fato de “haverem declarado” todas as contribuições recebidas à justiça eleitoral, na “boa fé” de que resultavam do “Caixa 1”, não do “Caixa 2”.
 
Um dos principais aspectos da “mãe de todas as bombas” de mestre Emílio é que ele deixa claro, para bom entendedor, que o orçamento estatal está arrebentado não pelo suposto déficit na Previdência Social. O déficit orçamentário resulta de obras superfaturadas, produção industrial e agrícola subsidiada por desonerações fiscais, serviços públicos encarecidos e tornados piores ao serem privatizados etc. etc., nos quais estão “embutidas” as propinas, comissões, percentagens, contribuições eleitorais e outros pixulecos.
 
Pela montanha já descoberta desses “embutidos” (cerca de 4 bilhões de dólares só da Odebrecht) dá para ter uma ideia do himalaia de lucros não declarados da burguesia que domina a economia brasileira. Supondo-se que os bilhões acima representem 1% a 4% da produção dessa empreiteira, temos, a confirmar, um volume de 400 bilhões a 1,6 trilhão de dólares transferidos para seus cofres, dos quais alguns bilhões de dólares devem ser lucro líquido.
 
A rigor, o pagamento de juros exorbitantes (os maiores do mundo) permite aos rentistas comerem cerca de 390 bilhões de dólares anuais das finanças públicas, o que é mais do que o dobro do propalado déficit da Previdência.

Some-se todo o cartel de empreiteiras, agrobiz, automobilístico etc. etc. etc. e se terá uma pálida visão da extorsão que o povo trabalhador e a nação brasileira sofrem. A crise fiscal decorre, então, do fato do sistema tributário brasileiro, totalmente regressivo, ter se tornado incapaz de manter o suprimento de recursos para manter o sistema de superfaturamento, desonerações, privatizações e outros meios de produção de propinas e lucros máximos, que consomem, na pior das hipóteses, cerca de 10% do PIB. As “reformas” golpistas visam superar essa dificuldade.

Os golpistas desdenham o fato de que os trabalhadores brasileiros foram os verdadeiros investidores, através do Estado, nas obras, produtos e serviços que, privatizados ou não, foram superfaturados e foram para o mercado por preços proibitivos para realizar lucro máximo ao capital caboclo, e querem aprofundar ainda mais os padrões de exploração, desigualdade, miséria, pobreza e atraso que marcam nossa sociedade. Para alcançar esse objetivo, os processos policiais, judiciais e midiáticos que aniquilem, como alvos principais, o PT e Lula, impedindo-os de voltar ao governo pelo voto popular e democrático, continuam sendo seu aríete principal de ataque.
 
Quem melhor expressou esse objetivo foi o promotor Dallagnol, ao apresentar o famoso datashow em que Lula é dado como “capo” dos “capos” da “organização criminosa” que supostamente comandaria o sistema de corrupção brasileiro. O problema, ou a verdadeira “mãe de todas as bombas” lançada no seio da sociedade brasileira, que não aparecia no organograma Dallagnol, é a lista da Procuradoria da República, tornada pública pelo ministro Fachin, apimentada pelos destemperos de mestre Emílio e engordada pela corja corruptora da Odebrecht, chamada de “delatora”.
 
Em outras palavras, o “sistema” de corrupção institucional é muito anterior ao PT e abrange uma escala empresarial, partidária e estatal muito mais ampla e superior do que as pequenas parcelas do PT e de outros partidos de esquerda que foram tentadas a fazer o mesmo que “todos os demais” faziam. Sistema que faz parte das engrenagens de funcionamento do capitalismo implantado no Brasil.

Do ponto de vista empresarial, abarca todas as grandes empresas de todos os ramos econômicos e financeiros; do ponto de vista político, engloba a nata dos partidos da burguesia (PMDB, PSDB e DEM), se estende à maior parte dos partidos de aluguel e, de rebarba, carrega alguns setores colocados à esquerda; do ponto de vista estatal, está incrustado em inúmeros bolsões de todas as empresas estatais e órgãos públicos.
 
Nessas condições, supor que essa crise ética e política vai ser resolvida estritamente pela judicialização é uma quimera tão ou mais perversa e ilusória do que a armação midiática do promotor Dallagnol, do que as penas do juiz Moro e do que a “delação universal” da manada corruptora da Odebrecht. Por esse caminho, haverá não só um aprofundamento da crise política e institucional, mas também da crise econômica e social, e pode ser criado um ambiente propício a aventuras golpistas mais reacionárias do que a realizada por Cunha-Temer et caterva.
 
Diante dessa situação, emergiram novas questões centrais para a esquerda, tendo o PT e Lula como principais atores porque continuam sendo, apesar de tudo, os de maior enraizamento popular. Em primeiro lugar, trata-se de opor-se publicamente a qualquer negociação com os golpistas (algo que tem sido noticiado ultimamente) para um indulto geral a todos os envolvidos nas investigações de corrupção. Supor que uma conciliação desse tipo pode ser uma saída para a crise será fatal à sobrevivência política do PT e de Lula, e para a própria continuidade da fraca democracia surgida da Constituição de 1988.
 
Em consequência, trata-se de manter uma firme posição contra o golpe atual e contra qualquer tentativa de desdobrá-lo, seja no sentido ainda mais reacionário, seja no sentido de salvar as figuras políticas envolvidas na corrupção. Trata-se, pois, de exigir a continuidade dos processos policiais e judiciais dentro da lei, incluindo a legislação contra abuso de poder, a presunção da inocência, a exigência de provas irrefutáveis e a condenação de vazamentos seletivos. Paralelamente, somos todos chamados a manter uma firme oposição às reformas neoneoliberais, que pretendem arrancar dos trabalhadores o pagamento das falcatruas praticadas pelas empresas capitalistas e manter seu sistema de lucro máximo, tudo às custas da maior parte do povo e da desnacionalização do país.
 
Ao mesmo tempo, urge elaborar um programa de reformas democráticas e populares que tenham como eixos: a) a recuperação e a defesa da soberania nacional; b) a retomada da industrialização e do emprego, tendo as empresas estatais como indutoras; c) o assentamento imediato dos trabalhadores rurais sem terra ainda existentes; d) a prioridade para a produção dos pequenos e médios agricultores familiares e cooperativos para o mercado doméstico; e) a transformação do sistema tributário regressivo em progressivo; f) a redução das taxas de juros; g) a adoção de uma política cambial competitiva para os manufaturados brasileiros; h) o estabelecimento de normas soberanas para a atração de investimentos estrangeiros; i) a convocação de uma Assembleia Constituinte Soberana para rever a Constituição de 1988, acentuando seus aspectos democráticos e nacionais, e livrando-a de seus aspectos conservadores e atrasados.
 
Sem um programa claro, pelo menos nos aspectos listados acima, o PT e a esquerda serão incapazes de reforçar a reativação e a mobilização popular e democrática, constituir uma poderosa frente social e política para impedir os retrocessos golpistas, e tornar viável e vitoriosa uma candidatura Lula à presidência em 2018. Além disso, só um programa desse tipo pode impedir, no caso da vitória presidencial, o retorno a políticas de conciliação que, no máximo, se limitaram a aumentar o poder de consumo dos pobres e miseráveis sem garantir um desenvolvimento consistente e duradouro da industrialização e do emprego, e permitiram que o capital político acumulado entre 2002 e 2012 se esgotasse diante da crise do capitalismo global e da insaciável rapina do capitalismo caboclo.

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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