Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – Ascensão e luta social

0
0
0
s2sdefault

Para A Tolice da Inteligência Brasileira, o “privilégio” aparece como “merecido”, sendo a forma “especificamente capitalista e moderna de legitimação da desigualdade social”. Já a “reprodução das classes altas”, tendo no “capital econômico seu elemento principal na luta pelos recursos sociais escassos, também depende em boa medida dos outros capitais”.

Assim, o mecanismo de exploração e reprodução capitalista – a extração da mais-valia pela classe capitalista ou burguesa no processo de produção – é jogado para debaixo do tapete da “classe média” em luta pela “reprodução de seus privilégios”. Já as “pobres... classes altas”, constrangidas a lutar por “recursos sociais escassos” para ter um lugar ao sol dependeriam dos outros “capitais” que permitem às classes médias reproduzir seus privilégios.

A Tolice... pode até estar bem-intencionada ao denunciar os “privilégios” da classe média. No momento em que parte considerável dessa classe se transforma em tropa de choque política da burguesia nacional e estrangeira, até contra as estreitas liberdades democráticas formais conquistadas pela luta social e política dos brasileiros, é difícil conter a indignação. No entanto, ao embaralhar os conceitos econômicos, sociológicos e políticos, na prática colocando as classes médias no topo da pirâmide dos privilégios, e camuflando a natureza das “classes altas” capitalistas, A Tolice... causa um desserviço à luta de classes que se trava no Brasil.

Nesse sentido, o livro se esforça em articular o “capital cultural” à formação das classes sociais. Tenta por exemplo nos convencer que ao “rico bronco” estariam “vedadas” tanto “as importantes relações entre o capital econômico e o capital cultural” quanto o próprio “capital social”. Isto porque o “capital cultural” seria aquele que “possibilita a naturalidade, a leveza e o charme pessoal, tão importantes no mundo dos negócios como em qualquer outro lugar” e, também, “o capital social de relações pessoais”.

A conclusão lógica de tais afirmações seria a de que os “ricos broncos” estariam fadados à falência. Ou, talvez, a não passarem de uma expressão de linguagem. Só através da posse do “capital cultural” alguém poderia conquistar “capital social” e chegar a construir seu “capital econômico”. Na prática, porém, mesmo utilizando os conceitos de A Tolice..., há muitos “ricos broncos” que, embora com pouco “capital cultural”, têm “capital econômico” suficiente para ir ao mercado e comprar, ou alugar, “capital social” e, também, “capital cultural”.

Através da compra e/ou aluguel de “capitais sociais”, que possuam ou não “capitais culturais”, o “rico bronco” acumula mais “capital econômico”, ingressa de forma cada vez mais firme na competição ou concorrência com outros “capitais econômicos”, e reproduz, de forma ampliada, seu próprio “capital econômico”. Com isso, ele pode até se transformar de “rico bronco” em “rico refinado”. O inverso disso é até possível: “capitais culturais” podem se transformar em “capitais sociais” e, com essas propriedades, se apropriar de “capitais econômicos”. Ou seja: indivíduos da “classe média” podem se tornar “ricos refinados”, e passarem a acumular “capitais econômicos”. Porém, isto é a exceção, não a regra no sistema capitalista.

Em termos marxistas, “rico bronco” ou “rico refinado”, tanto faz, não é senão um indivíduo que “acumulou” riqueza. Esse indivíduo, na sociedade moderna, é um capitalista ou um burguês. O problema dele, prático e teórico, consiste em que, para continuar um capitalista, não pode viver dessa riqueza como se fosse um tesouro a ser consumido ao longo dos anos, como fez Carlinhos Guinle.

Ele precisa ser um rentista, que multiplica sua riqueza através da aplicação em títulos de dívida pública ou de ações nas bolsas. Ou um comerciante ou um agente de serviços, que intermedia no mercado a produção industrial e agropecuária de outros capitalistas. Ou ser um industrial, ou um produtor agropecuário que, através da propriedade de meios de produção, e da compra de matérias primas e de força de trabalho assalariado, transforma o valor dessa força de trabalho comprada no mercado em um valor excedente. Isto é, um valor superior ao valor do capital constante e do capital variável que investiu para produzir uma determinada quantidade de mercadorias, ou valores de troca, cujo conteúdo são valores de uso.

A rigor, é através da apropriação desse valor excedente, ou mais-valia, gerado no processo de produção, que todos os “ricos” acumulam mais riqueza, sejam “capitalistas produtivos”, sejam capitalistas que atuam na circulação do capital (comercial, financeira e de serviços). É a relação entre os proprietários de meios de produção (sejam “broncos” ou tenham “charme”) e os proprietários de força de trabalho (sejam ignorantes ou letrados) que define os opostos, ou classes sociais, fundamentais da sociedade capitalista.         

É lógico que o autor de A Tolice...tem razão ao dizer que não são “as ocupações que criam as classes sociais”. E que, em certa medida, também tenha razão em supor que “é o pertencimento a certa classe que pré-decide a ‘escolha’ por certo tipo de ocupação”. Ou que a “ciência da sociedade tem como questão central saber por que as pessoas se comportam diferencialmente”.

Em termos weberianos, “ascender socialmente” seria possível “a quem logra incorporar as precondições que o capitalismo atual pressupõe para a crescente incorporação de distintas formas de conhecimento e de capital cultural como ‘porta de entrada’ em qualquer de seus setores competitivos”. Ou seja, A Tolice... sugere que, incorporando “capital cultural” e “capital social”, seria possível “ascender” das classes baixas às altas. O que não passa de uma miragem. Embora difundida diariamente pelo sistema de propaganda e publicidade dominante, tal miragem se confronta com as leis férreas do modo de produção, circulação e distribuição do capital, que se impõem com a mesma força tanto sobre os capitalistas quanto sobre os trabalhadores.

Tomemos como exemplo os esforços dos capitalistas individuais para introduzir novos métodos ou inovações de modo a aumentar sua lucratividade em relação aos outros capitalistas, esforço que Marx denomina concorrência e que hoje é generalizado como competição. Essa competição tem sido o motor da intensa incorporação científica e tecnológica ao processo produtivo.

O capitalista competitivo se orgulha de que seus novos métodos rebaixam seus custos de produção e possibilitam vender mais. Esse “comportamento diferencial” de uns capitalistas em relação aos outros é considerado natural e parte integrante do mercado. Pouco importa aos capitalistas “inventivos” que os menos inovadores, com custos mais elevados, menos competitivos, vejam seus lucros serem reduzidos, ou se tornarem negativos, neste caso sendo eliminados do mercado.

Além disso, os capitalistas competitivos sequer se dão conta de que tal “comportamento diferencial”, ao mesmo tempo em que lhes permite maior concentração e centralização do capital, também os empurra para o abismo. Ao aumentar o desenvolvimento científico e tecnológico do processo produtivo, a competição leva ao aumento da produtividade do trabalho. Esta, por sua vez, leva ao descarte da própria força de trabalho. Dizendo de outro modo, o processo inovador, que permite reduzir custos e elevar os lucros de uns capitalistas em relação a outros também eleva a composição orgânica do capital (preponderância do capital constante sobre o capital variável). Isto, por sua vez, significa que haverá menor necessidade de compra de força de trabalho assalariado no mercado.

Ou seja, os capitalistas inovadores elevam a extração de mais-valia relativa, que lhes permite uma acumulação de capital muito maior. Foi esse processo que levou à organização das grandes corporações transnacionais que hoje já dominam mais de 60% da produção mundial. E é ele que, nos países capitalistas mais desenvolvidos, tem deixado sem opção de trabalho uma massa crescente da força de trabalho desprovida de meios de produção. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que eleva sua capacidade produtiva a níveis nunca vistos pela história inicial e média do capitalismo, o “comportamento diferencial” promovido pela concorrência capitalista cria uma massa crescente de gente sem condições de acesso ao mercado de trabalho e ao mercado de consumo.      

A análise do “comportamento” capitalista quanto à competividade dificilmente poderia indicar que o modo de produção capitalista cria seus próprios limites estruturais.

Não há sequer um capitalista que aceite que seu “comportamento diferencial”, de concorrência desvairada, principalmente quando atinge o nível do monopólio e do oligopólio, o está levando a matar seus consumidores e, portanto, a criar uma contradição aparentemente insolúvel com sua própria dinâmica produtiva. Mesmo porque não elevar sua competitividade é o mesmo que decretar a queda constante de seu lucro ou a própria falência, embora no caso da indústria bélica a criação das condições para matar seus consumidores faça parte de sua natureza produtiva.

Portanto, para “analisar e interpretar a sociedade, dizer onde estão seus problemas e para onde ela tende a ir”, não basta saber como as pessoas se ”comportam diferencialmente”. É preciso analisar em profundidade as relações econômicas e sociais (classes sociais) predominantes que existem nessa sociedade, quais suas tendências objetivas de desenvolvimento histórico (as “leis” a que todos devem obedecer para “sobreviver”), e quais suas expressões culturais e políticas, sem descurar da influência de expressões remanescentes de formações históricas anteriores.

Nesse sentido, A Tolice... tem razão em dizer que a “luta de classes não é apenas a greve sindical ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem”. Mas erra, e muito, ao supor que a luta de classes “é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente”. Tal “exercício silencioso da exploração” é apenas um dos aspectos, o aspecto de “cooperação” na relação contraditória entre o capital e o trabalho. Por outro lado, o conflito, o choque, o combate constitui seu aspecto oposto, o aspecto da “insubordinação” do trabalhador (classe operária) contra o capitalista (classe burguesa).

Sem analisar esses aspectos contraditórios das classes e de suas lutas, o mais provável é que se construam tolices a respeito.

Acompanhe a série completa produzida pelo autor sobre o livro de Jessé de Souza

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
0
0
0
s2sdefault