Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – principais problemas

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Bem vistas as coisas, os problemas de A Tolice da Inteligência Brasileira residem tanto na fraqueza de seus conhecimentos científicos da economia política e da sociologia quanto nos conhecimentos truncados da história, inclusive da história brasileira. Tomemos, por exemplo, sua concordância plena com Norbert Elias, para quem “é precisamente o corte com a herança escravista da Antiguidade que produz a singularidade de toda a cultura ocidental”.

 

“Cortar com a herança escravista da Antiguidade” significa, no mínimo, cortar com a herança de toda a filosofia grega, de Tales, Anaxágoras, Heráclito, Cicero, Platão, Aristóteles etc. etc. etc. É evidente que as geniais especulações desses pensadores, embora sem condições de comprovação científica na ocasião, podem parecer apreciações infantis. Mas não deixa de ser fabuloso que Tales tenha intuído a redondeza da Terra ao olhar os mastros das embarcações sumirem paulatinamente no horizonte visual. Ou que Heráclito tenha intuído o movimento e as transformações dialéticas ao comprovar que nunca se mergulhava nas mesmas águas de um rio. E que tenham existido inúmeros exemplos similares.

 

Se levarmos em conta que foi necessário bem mais de um milênio para que as ciências começassem a substituir as especulações filosóficas daqueles pensadores, que devem sua possibilidade de pensar e especular ao ócio produtivo que o escravismo lhes proporcionou, é difícil estabelecer um “corte com a herança escravista da Antiguidade”, a não ser que tal corte incorpore todos os aspectos positivos que a formação social escravista grega produziu.

 

Pode-se argumentar que a escravidão romana foi um “corte” com a herança escravista Antiga, no sentido de que os romanos não conheceram as especulações filosóficas gregas. E que seu escravismo militar tenha ido muito além das expedições gregas em direção ao oriente e ao ocidente. Mas sua origem e desenvolvimento se devem, em grande parte, à herança das colônias escravistas gregas na península itálica.

 

Pode-se, também, argumentar que os bárbaros, que deram fim ao Império Romano do Ocidente, realizaram um corte profundo com a herança escravista da Antiguidade, ao mesmo tempo em que rompiam com sua herança comunitária e assumiam a nascente herança feudal do clientelismo romano. No entanto, o que “iluminou” o Ocidente e iniciou o rompimento com a imutável religiosidade feudal, séculos depois, foi a ocupação de Constantinopla pelos turcos e a descoberta dos trabalhos filosóficos da Antiguidade escravista grega, arquivados como segredos de Estado pelos cristãos ortodoxos.

 

É certo que A Tolice... tem razão quando ataca o economicismo como “crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade” poderia ser explicado “unicamente” pelo “estímulo econômico”. Isto seria, realmente, uma “cegueira acerca dos componentes simbólicos da vida social”, que “não é produzida apenas dessa maneira”. No entanto, para reforçar tal ataque, e explicitar sua própria visão, A Tolice... complementa que o economicismo seria “um racismo latente”, o que explica, em parte, sua preocupação com a herança escravista.

 

O problema consiste em supor que o economicismo se resume a “imaginar que, para além da troca de mercadorias e do fluxo de capitais, não existe mais nada em comum entre as sociedades modernas capitalistas na dimensão simbólica e não econômica”. Ou seja, seria como se “global” fosse somente a “troca de mercadorias e fluxo de capitais”. A “dimensão simbólica do mundo” seria “sempre nacional”. Portanto, nessa “dimensão” existiria apenas uma “cultura nacional”, algo como “o tal conto de fadas... que se transforma por debaixo do pano em ciência oficial de cada país”.

 

Ou seja, no justo combate ao economicismo, o texto descamba para o idealismo filosófico, erigindo uma dimensão simbólica sem raízes materiais. Corta as bases da economia, restringindo-a à “troca de mercadorias” e ao “fluxo de capitais”. Ou seja, apenas à circulação capitalista. Assim, mantém uma linha de análise e argumentação, da qual não faz parte o trabalho, nem o processo produtivo, individual e social, responsáveis pela geração do valor e da riqueza. E da qual não constam os mecanismos através dos quais a classe dominante faz a distribuição daqueles valor e riqueza, apropriando-se da maior parte.

 

A Tolice... embaralha a distribuição da riqueza produzida com a possível existência de “capitais culturais”, que seriam a chave para participar da apropriação dos recursos escassos. Com isso, ela escorrega num economicismo a meias, simbólico, para analisar o capitalismo, ou qualquer outra formação econômica e social. O que faz com que nos detenhamos um pouco na análise sintética da formação histórica escravista, de modo a tentar esclarecer que nenhuma sociedade gera riqueza, cultura e “componentes simbólicos da vida social” sem a ação produtiva da força de trabalho humano.

 

Sem o trabalho, que transforma os materiais ofertados pela natureza em materiais e instrumentos úteis ao desenvolvimento da vida humana, esta dificilmente existiria. O trabalho vivo desempenhou papel importante e determinante na transformação dos antropoides em seres humanos, no desenvolvimento da capacidade cerebral, no surgimento e desenvolvimento da cultura, e no surgimento e desenvolvimento dos modos de produção, distribuição e circulação das riquezas.

 

No escravismo, tanto no antigo (chinês, grego, hindu, babilônico, persa) quanto no moderno (das colônias portuguesas, espanholas, francesas e inglesas, na Ásia, África, e nas Américas do Norte, Central e do Norte), o trabalhador, assim como sua força de trabalho, era propriedade do escravista, ou escravocrata, também proprietário dos solos agrícolas, pastagens e minas.

 

O trabalhador escravizado era caçado e transformado num instrumento, dedicado a realizar a produção agrícola e pecuária, a exploração mineral, e também aquilo que Aristóteles chamava de “artes mecânicas”, como o artesanato de tecidos, de ferramentas e outros utensílios. Todas essas “artes”, ainda segundo o grande filósofo grego, eram impróprias de serem praticadas pelos que eram considerados verdadeiros seres humanos, num exemplo significativo da ideologia, ou do simbolismo, justificador daquele sistema de dominação e distribuição privada da riqueza gerada pelo trabalho.

 

O trabalhador escravo era, ainda, uma mercadoria que podia ser negociada no mercado, da mesma forma que os produtos resultantes de seu trabalho na agricultura, na mineração e no artesanato. Em termos gerais, os escravos constituíam a classe trabalhadora daquela época, enquanto os senhores fundiários e escravistas constituíam a classe proprietária dominante. Proprietária do solo e de homens escravizados, essa classe era também proprietária de toda a riqueza produzida pelos escravos, nem sempre lhes fornecendo a parcela necessária para sua reprodução como força de trabalho.

 

Por outro lado, a classe senhorial, ou escravocrata, e a classe escrava não eram as únicas presentes no escravismo. No escravismo antigo, como resultado do longo processo histórico de transição gentílica, ou familiar-patriarcal, para o modo de produção, circulação e distribuição escravista, restou uma larga parcela de homens livres não proprietários, ou proprietários de pequenas parcelas de terra ou de outros instrumentos de trabalho.

 

Essa parcela formou uma classe intermediária entre os escravocratas e os escravos, às vezes constituindo o grosso da força armada escravocrata em suas expedições de captura de novos territórios e novos escravos, às vezes exigindo maior participação na distribuição das riquezas geradas pelo trabalho escravo. No ocidente, são conhecidas as exigências e lutas dos demos gregos e da plebe romana. Como são conhecidas também as diversas formas utilizadas pela classe dominante escravocrata (nobreza) para construir um aparato (Estado) que lhe permitisse expandir seus territórios e protegê-la das demandas, revoltas internas e ataques de outros Estados escravistas. A quem tiver dúvidas a respeito, recomenda-se, pelo menos, o estudo da história do Império Romano.

 

O escravismo começa a ruir quando os diversos fatores de sua reprodução (guerras de conquista de territórios e escravos, classe intermediária relativamente reduzida, alta produtividade dos escravos, nobreza unida, baixa intensidade da luta interna de classes) se transformam de positivas em negativas, do ponto de vista tanto econômico quanto social, cultural e político.

 

As guerras de conquista começam a dar mais prejuízo do que vantagens, tanto em termos territoriais quanto em número de escravos capturados. A prole gerada pelos homens livres não proprietários aumenta a força e a pressão da classe livre não proprietária (ver a história das lutas da plebe romana). Os escravos se rebelam cada vez mais, desprezando os símbolos ideológicos que os dominavam como seres inferiores, constituindo, em grande parte, grupos errantes de bandoleiros salteadores e expropriadores. E a riqueza produzida pelo trabalho da classe escrava se torna crescentemente desproporcional em relação às necessidades materiais e espirituais da nobreza.

 

Muitos escravistas da época começaram a ver mais vantagem em libertar seus escravos, em parte ou no todo, enquanto outros os transformaram em “clientes”. Isto é, tornaram-se nobres “protetores” de camponeses e artesãos libertos, ao mesmo tempo em que exigiram deles uma série de “obrigações”, desde a entrega de parte da produção até a participação na defesa do latifúndio (formas diferentes de apropriação da renda fundiária).

 

Esse modelo clientelista de definhamento do escravismo e surgimento de um novo modo de produção, circulação e distribuição, foi mais ou menos generalizado em todo o mundo, embora com as singularidades próprias aos diversos povos do planeta. Ele foi acompanhado de guerras e revoltas generalizadas, entre nobrezas de diferentes reinos, e/ou entre nobrezas de um mesmo reino, assim como de invasões de povos considerados bárbaros, que se estenderam por vários séculos. Em termos gerais, produziu novos simbolismos, novas culturas, novas formas de Estado que, por sua vez, atuaram no sentido de consolidar as mudanças em curso e tentar tornar eterno aquilo que se classificou depois como feudalismo.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

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