Pensando a longo prazo – Capital em crise, aporias marxistas

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Wladimir Pomar
27/09/2016

 

 

 

Retornando à discussão de A Tolice da Inteligência Brasileira, lembramos que ela exige “uma visão global do capitalismo”. Nesse sentido, é importante recordar que, a partir dos anos 1970, como resultado da revolução tecnológica e do grande excedente de capitais acumulados durante e após a Segunda Guerra mundial, o capitalismo dos Estados Unidos viu-se diante de dois impasses sérios.

 

Um escancarado: o da guerra no Vietnã. Outro oculto: aquilo que alguns economistas (não só marxistas) chamaram de “colapso da taxa média de lucro”.

A combinação desses impasses levou o capitalismo estadunidense a empreender reajustamentos profundos em sua estratégia política e em sua estrutura econômica. Por um lado, reconheceu a China Popular, retirou suas tropas do Vietnã e concentrou seu foco contra a União Soviética, neste caso através da ousada corrida armamentista da “Guerra nas Estrelas”.

 

Afinal, corrida armamentista sempre foi uma arma de recuperação das economias capitalistas. Com ela, o capital norte-americano pretendia matar dois coelhos numa só cajadada: levar ao colapso a economia soviética, que desde os anos 1950 vinha apresentando problemas graves em seu desenvolvimento, e sustar a tendência de queda de sua taxa média de lucro.

 

Esses reajustamentos tiveram o mérito de fazer com que a URSS aceitasse a disputa e fosse levada à lona no início dos anos 1990. Eles, porém, não conseguiram resolver o problema crucial de queda da taxa média de lucro. Ao contrário, a produção de armamentos, por seu alto nível tecnológico, impulsionou ainda mais aquela tendência negativa.

 

Diante disso, antes mesmo da derrocada soviética, o capital norte-americano viu-se na contingência de realizar a mais radical reestruturação econômica, financeira e social de sua história contemporânea. Rompeu o acordo Breton Woods, transformou o dólar americano em equivalente universal de troca e promoveu as mais intensas exportações de capitais de sua história.

 

Essas exportações de capitais apresentaram duas formas básicas: a) a financeira, tendo como eixo principal a especulação de diferentes formas de papéis (derivativos etc.); e, b) a transferência de plantas industriais, completas ou segmentadas para países atrasados do ponto de vista do desenvolvimento capitalista e, portanto, de mão de obra barata capaz de gerar mais-valia absoluta e elevar a taxa média de lucro.

 

Com isso, os Estados Unidos se permitiram ter déficits colossais em suas diversas contas internas e externas e promover sua própria desindustrialização. Seu capitalismo, para salvar sua taxa média de lucro, e manter seu processo de concentração e centralização através de uma eterna reprodução ampliada, adotou políticas globais, cada vez mais agressivas, de especulação financeira e de industrialização de países agrários e agrário-industriais, e de desindustrialização interna, deixando seu proletariado se lixar.

 

Esse caminho do capital norte-americano foi seguido, embora de maneira aparentemente menos intensa, pelas demais versões avançadas desse sistema econômico, social e político. Assim, o capitalismo desenvolvido passou a apresentar, de forma cada vez mais nítida, as tendências “perigosas”, previstas por Marx. Isto é, centralização do capital, revolucionamento constante das forças produtivas, elevação da produtividade, desemprego estrutural, pauperização dos trabalhadores, crises destrutivas, contração do consumo e mundialização.

 

A centralização do capital já não dá mais bola para o “perigo comunista”, deixando que apenas 1% a 3% da população realize uma apropriação privada colossal das riquezas geradas pelos trabalhadores. Opera para desmontar e liquidar tanto os “Estados de Bem-Estar” europeus, quanto o “American Way of Life”. Enquanto na Europa se supõe existirem mais de 50 milhões de desempregados, nos Estados Unidos o número de pessoas abaixo da linha da pobreza é calculado em mais de 47 milhões. A centralização do capital e a pauperização absoluta e relativa dos trabalhadores foram estatisticamente demonstradas por Thomas Picketty, embora ele pense haver descoberto a própria causa da desigualdade.

 

Por outro lado, as versões avançadas do capitalismo viram-se obrigadas a adotar duas políticas contraditórias nas exportações de capitais para as sociedades atrasadas. Uma, tendo como norma orientadora o Consenso de Washington, exportou capitais objetivando a subordinação financeira e o desmonte industrial de países atrasados. A outra, diante de países com Estados nacionais que não aceitaram o Consenso de Washington, a exemplo da China e da Índia, exportou capitais produtivos, participando de sua industrialização.

 

É fundamentalmente esse processo de exportação de capitais industriais e financeiros que está levando a uma mundialização, internacionalização, planetarização ou globalização do modo de produção, circulação e distribuição capitalista. Ao lado das versões avançadas do capitalismo, alguns em franca desindustrialização, apesar de extorquirem riquezas através da especulação financeira, se encontram tanto países que seguem os ditames do Consenso de Washington quanto países soberanos que se aproveitam da necessidade imperiosa das exportações de capitais do capitalismo avançado para se tornarem novas potências industriais.

 

Diante de tudo isso, às ciências, em particular às ciências históricas, econômicas e sociais, cabe cada vez mais demonstrar se existe ou não uma “oposição” entre as sociedades capitalistas avançadas e as atrasadas. E, se ela estiver presente, esclarecer em que consiste tal “oposição”, quais as contradições que estão envolvidas nela e como tais contradições se modificam num sentido ou noutro.

 

Nesse sentido, o “objetivo maior da ciência” tem de ir muito além da “crítica do senso comum e suas ilusões” e da crítica ao “sujeito coletivo” e a outras “aporias” que, segundo A Tolice..., teriam marcado “boa parte do marxismo ocidental”. Mesmo porque, tais “aporias” (dificuldades, impasses paradoxos, dúvidas, incertezas), que marcaram todas as vertentes do “marxismo”, estiveram relacionadas com algo que Marx e Engels vislumbraram, mas não tiveram tempo de tratar.

 

Isto é, a transferência do epicentro da luta de classes dos países capitalistas avançados para países “atrasados” no desenvolvimento capitalista, e a possibilidade de “revoluções vitoriosas” nesses países, dirigidas por partidos socialistas e/ou comunistas. Para Marx e Engels, o capitalismo, com todas as suas formas de funcionamento (mercado, assalariamento, dinheiro, Estado etc. etc. etc.) só poderia ser superado, isto é, transformado numa sociedade de tipo superior, que resolvesse a contradição básica entre a apropriação privada e o consumo social, quando esgotasse ou chegasse perto de esgotar todas as suas possibilidades de desenvolvimento.

 

Mesmo nessas condições, seria necessário um tempo razoável para transformar todas e cada uma das formas “privadas” em formas “sociais”. O socialismo seria esse período de transição, um elo entre o passado em superação e o futuro em construção. Talvez pelas dificuldades previstas, e pela envergadura da transição, os fundadores do marxismo tenham sugerido que tal “revolução” teria que ser universal. E, se não fosse, correria o risco de “voltar à mesma m... do passado”, como disse Marx sarcasticamente.

 

Mas a história, com seu núcleo materialista e dialético, parece não haver concordado totalmente com essas teses “marxistas”. Primeiro, como dissemos, transferiu o epicentro da luta de classes para a parte “atrasada” do mundo. Depois, fez com que nessa parte atrasada surgisse a possibilidade de uma revolução “proletário-camponesa”, antifeudal e anticapitalista, há quase 100 anos atrás, dirigida por um partido comunista.

 

Mais ainda: fez com que tal revolução fosse vitoriosa, apesar da intervenção de 13 potências estrangeiras, que a desgastaram numa guerra civil de três anos, e estabeleceram um bloqueio econômico e político ao novo Estado dos sovietes, ou conselhos. Imaginem-se as “aporias” que devem ter assaltado os revolucionários russos e das demais nacionalidades do antigo império tzarista sobre que caminho seguir. Não havia, então, qualquer teoria que tivesse por base experiências desse tipo.

 

De qualquer modo, essa revolução impulsionou a difusão do marxismo pelo resto do mundo. Em muitos países, o marxismo foi confundido com a prática da revolução russa e adotado como doutrina. Em outros, foi compreendido como instrumento de análise científica da realidade do país real e transformado em teoria específica de ação e transformação. Mesmo assim, fazer uma revolução é uma coisa diferente de construir uma nova sociedade.

 

Portanto, também aqui, as “aporias” eram inevitáveis. E o marxismo, como instrumento científico para a análise da realidade e para a ação transformadora teria que confrontar-se com elas para elaborar a teoria crítica dessa realidade, diferente daquela vivida e estudada por seus fundadores. Se prestarmos atenção a esta discussão em A Tolice..., e às discussões que continuam dividindo e embolando tanto os “marxistas” brasileiros e de inúmeros outros países quanto “weberianos”, “keynesianos”, “shumpeterianos” etc. podemos sugerir que ainda há um vasto caminho a percorrer.

 

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Pensando a longo prazo

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

 

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