Pensando a longo prazo – II

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Wladimir Pomar
29/06/2016

 

 

 

 

Continuando no debate sobre o interessante A Tolice da Inteligência Brasileira, vale a pena entrar mais fundo na questão do Estado. A incompreensão sobre esse instrumento de poder é recorrente na sociedade brasileira, inclusive em sua “inteligência”. E ele se torna de indispensável discussão neste momento em que grande parte desse aparato político, social e econômico foi acionado e mobilizado não só para expelir o PT da parcela que detinha no governo, mas também da participação dele e da esquerda na vida política no país.

 

Lendo com atenção o texto de Jessé e sua defesa do Estado, que sofreria constante ataque das “classes endinheiradas brasileiras”, classes que chegaram a construir “uma ideologia antiestatal para melhor monopolizar e instrumentalizar o Estado a seu favor”, temos a impressão de que o Estado é um ente mitológico eterno, contra o qual os poderosos lutam, ao mesmo tempo que tentam colocá-lo a seu serviço. Será isso mesmo que acontece?

 

É bom rever um pouco da história. O Estado é um produto histórico, de milhares de anos atrás. Surgiu paralelamente aos problemas criados com a criação e o desenvolvimento da pecuária e da agricultura, com a transformação da propriedade social comunitária em propriedade privada sobre os meios de produção, e com a divisão social do trabalho entre senhores, clientes e escravos. Basta dar uma lida no Velho Testamento para sentir as dores dessa criação.

 

Em todo o processo e etapas históricas posteriores de desenvolvimento econômico e social, o Estado sofreu modificações constantes. Tudo em função das mudanças que ocorriam nas formações sociais e nas classes sociais que as compunham. Mas, sempre, com raros hiatos, funcionou como instrumento político daquelas classes que detinham o poder econômico, o poder social e, se quisermos ser mais detalhistas, o poder cultural.

 

São conhecidos os diferentes tipos de Estado na Grécia antiga, patriarcal e escravista, incluindo a efêmera democracia, e no Império Romano, escravista e clientelista, que chegou a ser republicano. É também conhecido o tipo de Estado monárquico feudal centralizado chinês, cuja força era de tal ordem que até mesmo as revoltas camponesas voltadas contra ele, ao vencerem, o reproduziam, como aconteceu com a dinastia Han e outras.

 

O capitalismo, ao adicionar a seu poder econômico e social o poder político, deu surgimento a um tipo de Estado formalmente democrático (todos seriam libertos, iguais e fraternos perante a lei). No entanto, os Estados inglês, belga, holandês, dinamarquês, espanhol e sueco (monarquias constitucionais) são diferentes dos Estados francês, italiano, português (repúblicas), embora tenham em comum a hegemonia e o domínio da classe capitalista sobre eles.

 

Essas diferenças estão relacionadas ao desenvolvimento histórico da luta de classes que conduziu à superação dos antigos Estados feudais monárquicos na Europa. E, em grande medida, também estão relacionadas com a luta de classe desenvolvida pelos trabalhadores para fazer valer os direitos democráticos contra o liberalismo estreito da burguesia. Basta pesquisar as datas em que foram conquistados direitos democráticos simples como o voto universal, o voto feminino, a jornada de oito horas, a aposentadoria etc. etc. etc.

 

Se isso é assim nos chamados Estados desenvolvidos da Europa e da América do Norte, porque no Brasil existiria um Estado a-histórico, contra o qual a burguesia econômica e socialmente dominante teria criado uma suposta “ideologia antiestatista”, contrária à “ideologia do mercado justo”? Isto deveria levar as classes populares e democráticas a defender tal Estado, como se ele fosse seu?

 

Na prática histórica brasileira, porém, apesar de suas particularidades, o Estado foi criado pelas classes dominantes portuguesas para garantir o saque das riquezas agrícolas e minerais. Com o passar do tempo, à medida em que as classes dominantes se modificaram, o Estado também se modificou.

 

O Estado colonial, nas diversas formas que assumiu desde o início da exploração portuguesa (mesmo que se desdenhe as donatárias, os primeiros governos gerais, as câmaras municipais de “homes bons”), até assumir a forma de monarquia absolutista, foi construído para manter o poder econômico e social dos “sesmeiros”, a denominação dos latifundiários de então, para facilitar a continuidade das relações de produção escravistas e garantir a continuidade do saque das riquezas naturais e agrícolas do país.

 

O Estado resultante da independência manteve a garantia do bandeamento das riquezas minerais, principalmente para Portugal e Inglaterra, contribuindo decisivamente na acumulação do capital primitivo que deu surgimento ao modo de produção, circulação e distribuição capitalista, durante o século 18, no solo britânico. Por outro lado, seu papel na continuidade do tráfico de escravos, mesmo após a Inglaterra haver se transformado de maior traficante mundial em nação repressora contra o escravismo, se manteve até a segunda metade do século 19, numa demonstração clara de a quem tal Estado servia.

 

Embora as formas do Estado brasileiro tenham mudado no correr do tempo, acompanhando as mudanças que ocorriam na formação econômico-social do país (como teremos oportunidade de rever em comentários futuros), sua natureza de servidor das classes dominantes, detentoras do poder econômico e do poder social, manteve-se intacta. No Brasil, não existe uma ideologia antiestatista, no sentido de que tal estatismo se refere ao conjunto do aparato do Estado.

 

O que existe é uma ideologia contra a interferência do Estado na economia (mercado), principalmente se tal interferência estiver voltada a reduzir as iníquas desigualdades sociais, contra as quais Jessé se rebela, com toda razão. A ideologia voltada contra a interferência do Estado no mercado, assim como a ideologia da pretensa capacidade do mercado para se autorregular, são apenas componentes importantes, no campo das ideias (inteligência), para evitar que as classes exploradas e oprimidas aprendam que o Estado pode ser um instrumento importante e capaz de interferir positivamente a seu favor na sociedade.

 

Em outras palavras, supor que a classe endinheirada e capitalista histórica tenha uma ideologia antiestatista, embora isto até possa aparecer momentaneamente como um flash enganoso, não passa de ingenuidade weberiana. Essa classe dominante, como demonstrou a experiência histórica brasileira do século 20, foi capaz de lutar com todas as armas para evitar, impedir ou retirar as expressões políticas de classes populares que ascenderam a pequenas parcelas do Estado, como é o governo federal. Imagine-se, então, o que ela será capaz de fazer contra as tentativas de modificar a natureza de seu Estado.

 

Se Jessé houvesse recorrido à história talvez houvesse se dado conta do antiestatisno enganoso da burguesia cabocla e não tivesse labutado em erro, em especial neste momento em que, como ele próprio alerta, inúmeras parcelas desse Estado estão empenhadas em consolidar um golpe parlamentar e/ou judiciário contra o direito democrático de eleger os governantes.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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