Correio da Cidadania

Repisando “narrativas” – Problemas Agrários

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Ao tratar da situação agrícola, o documento “Mudar para Sair da Crise...” faz uma análise positiva da evolução dos “últimos anos”. Sustenta que “houve avanços na melhoria das condições de vida no campo. A extrema pobreza ... como reflexo das várias políticas públicas executadas no período”. “O rendimento médio mensal domiciliar per capita da agricultura familiar apresentou evolução significativa... com destaque para a evolução observada na região Nordeste, onde a variação real foi de 68,3%”.

 

O documento reconhece que “esses progressos decorreram do Programa Bolsa Família, do Programa Brasil Sem Miséria e dos diversos programas voltados para a agricultura familiar, com destaque para o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF), que financia produção com taxas subsidiadas e, além disso, fornece assistência técnica para mais de um milhão de agricultores familiares, incluindo indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária”.

 

Ainda segundo o documento, “também merecem destaque as ações do Programa Garantia-Safra – voltado para os agricultores familiares do semiárido nordestino que sofrem perda de safra por seca ou excesso de chuvas; e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA, que garante renda e contribui para o abastecimento de escolas públicas, hospitais e instituições beneficentes), desenvolvidos no âmbito do PRONAF”.

 

Apesar disso, “Mudar para Sair da Crise...” acentua que “estes avanços relativos... não devem obscurecer o fato de que um programa de desenvolvimento necessita enfrentar os desafios estruturais que a questão agrária ainda apresenta nos dias atuais”. A essa questão agrária estaria relacionada a reforma agrária, embora de “forma autônoma”, porque a questão agrária problematizaria “a estrutura de propriedade, posse e uso da terra”, enquanto a reforma agrária conteria “a proposta política de reforma dessa estrutura agrária”.

 

O documento procura demonstrar que os atuais problemas da estrutura agrária brasileira “são graves e refletem a reiterada recusa do poder econômico de submeter o sistema agrário a uma regulação democrática”. E afirma que “o processo da reforma agrária” teria tido início “em meados do século passado”. Depois, foi “reciclado nos anos de 1980 (Assembleia Nacional Constituinte)”, tendo passado por “fases históricas de forte negação (período militar) ou desconstrução (anos de 1990 e 2000)”. Nestas últimas fases teriam “se exacerbado as tendências de mercantilização da terra, causa dos conflitos agrários e riscos sociais e ambientais contemporâneos”.

 

Infelizmente, “Mudar para Sair da Crise...” não contempla o fato de que “a estrutura de propriedade, posse e uso da terra” engloba determinadas relações sociais, ou relações de produção, através das quais a terra é usada (trabalhada) para gerar uma renda determinada, a renda fundiária. Portanto, para analisar a estrutura agrária, teria sido necessário levar em conta tanto o sistema de propriedade e posse quanto o sistema de uso, ou as relações de produção vigentes, sem o que a análise fica incompleta.

 

Historicamente, a estrutura agrária brasileira, desde o processo de colonização europeia, foi caracterizada pelo domínio monopolista da propriedade agrária, ou pelo predomínio das grandes sesmarias, depois nomeadas latifúndios. É verdade que as grandes extensões do território nacional também permitiram a existência de posseiros livres, apesar da proibição da Lei Agrária de 1850, e o surgimento bem posterior de micros e pequenos proprietários, em geral relacionados a projetos governamentais e/ou privados de colonização agrícola.

 

No entanto, o domínio quase absoluto da maior parte do território do país por propriedades latifundiárias jamais foi abalado. Após a libertação dos escravos, esses latifúndios continuaram absorvendo a maior parte das forças de trabalho na agricultura, mas então por um sistema de “agregação” de trabalhadores rurais livres, como há muito era utilizado nas grandes fazendas de gado. Da mesma forma que lá, esses trabalhadores “faziam uso” da terra do latifundiário, obrigando-se a pagar a ele, pelo “favor” de poderem produzir, uma parcela da produção que obtinham (em geral, a meia ou terça parte).

 

Surgiram dali as variadas classificações dos agregados: meeiros, terceiros, rendeiros, foreiros e outras. Essas foram as principais formas de apropriação da renda fundiária pelos latifundiários. Mas, além disso, foi comum que os latifundiários, para seus próprios serviços, obrigassem os agregados a trabalharem, de graça, um ou mais dias, ampliando a extração da renda fundiária. Era algo idêntico à corveia feudal europeia, aqui chamada de “cambão”, que só perdeu força com a extensão da legislação trabalhista às áreas rurais, a partir dos anos 1950. O cambão passou a ter, legalmente, a diária paga, embora nem sempre na prática.

 

Essas relações eram empregadas até mesmo nas “plantações modernas” de cana, café, cacau etc., embora nelas já fossem combinadas a um grau maior de assalariamento. Em quase todo o campo brasileiro, a essa combinação de propriedade territorial monopolizada por latifúndios com relações de produção arcaicas, somava-se o sistema de “fornecimento”. Através dele, os latifundiários faziam a intermediação comercial dos produtos alimentícios e das ferramentas necessitados pelos “seus” lavradores agregados para subsistirem até a safra.

 

Com isso, tornou-se comum que os agregados, após pagarem a renda e o débito dos fornecimentos, iniciassem a nova safra já endividados. Assim, embora os agregados não pertencessem à gleba, como no sistema feudal europeu, o endividamento os mantinha presos ao latifúndio, do qual só conseguiam livrar-se pela fuga, ou pelas calamidades naturais.

 

A partir do final dos anos 1940, as lutas contra esse sistema latifundiário ganharam vulto, com o aumento das fugas de lavradores para áreas de posse das fronteiras agrícolas, e com os confrontos de posseiros contra os latifundiários grileiros. No final dos anos 1950 e 1960 ganharam destaque as lutas de Trombas-Formoso, Pindaré, e o movimento das Ligas Camponesas, tomando corpo real a reivindicação por uma reforma agrária que dividisse as terras latifundiárias entre os milhões de trabalhadores rurais sem-terra. O que significava não só mudar a estrutura de propriedade e posse da terra, democratizando-a, mas também transformar as relações de produção de subordinação dos camponeses aos latifundiários em relações de produção familiares livres.

 

No entanto, essas mudanças não se concretizaram. Além da “reforma agrária” haver passado por uma “fase histórica de forte negação” durante o “período militar”, esse período também introduziu uma radical transformação no “uso da terra”. Isto é, nas relações de produção, tendo como orientação o Estatuto da Terra, decretado pelo regime militar ainda em 1964. As relações de produção aparentadas ao trabalho servil foram revolucionadas através de um persistente e longo processo de financiamento público à modernização técnica da produção agrícola dos latifúndios.

 

Essa modernização estimulou a expulsão massiva dos agregados. Os enxotou para as grandes cidades de desenvolvimento industrial, e os transformou em exército industrial de reserva dos centros urbanos. Ou seja, sem mexer na estrutura de propriedade e posse da terra, a ditadura militar mudou as relações de produção arcaicas em relações capitalistas, e transformou os latifundiários, que viviam exclusivamente da renda da terra, em latifundiários capitalistas. Estes, além da renda da terra, agora arrancam mais-valia do trabalho assalariado de cerca de 2 milhões de operadores de máquinas e outros equipamentos.

 

Criou-se, assim, uma fração agrária e agrícola da classe capitalista, o “agronegócio”, associada a grandes corporações industriais e comerciais estrangeiras, fabricantes de insumos e participantes ativos da comercialização internacional de commodities agrícolas. Apesar disso, a questão agrária continuou presente. Primeiro, porque o latifúndio, mesmo havendo se tornado capitalista, manteve sua propensão a “grilar” terras dos minifundiários e dos pequenos e médios proprietários agrícolas. A diferença em relação aos períodos anteriores é que essa “grilagem” é principalmente realizada através da compra do solo de lavradores endividados.

 

Ou seja, aquilo que o documento “Mudar para Sair da Crise...” chama de exacerbação das “tendências de mercantilização da terra” não é senão o novo processo de expropriação de pequenos e médios proprietários agrícolas pelos grandes capitalistas agrários. Tal expropriação intensificou a emergência de uma nova geração de trabalhadores sem-terra, agora oriunda principalmente de micros e pequenos proprietários arruinados, causando “conflitos agrários” de diferentes tipos.

 

Segundo, porque o domínio monopolista sobre a terra e o novo processo de expropriação mercantil que leva adiante impõem problemas sérios à produção de alimentos para o mercado doméstico, ao mesmo tempo em que exigem do erário público um volume também exacerbado de financiamento das safras de commodities. Os alimentos agrícolas se transformaram nos principais vilões inflacionários, ao mesmo tempo em que obrigam a importação de alimentos tradicionais da cultura alimentar brasileira, como o arroz e o feijão.

 

E, terceiro, porque aquele domínio latifundiário não respeita a cobertura arbórea, nem mesmo dos cursos d’água, nem as condições específicas dos solos, promovendo um processo de destruição ambiental, cujos resultados e prejuízos de longo prazo são evidentes, mas ainda difíceis de dimensionar. O documento tem razão em frisar que “o impasse instalado não é apenas da discrepância do regime fundiário constitucional e da norma fundiária do mercado. É a contínua e crescente instabilidade social e insustentabilidade ambiental do sistema de ‘terra mercadoria’ face às necessidades de proteção e salvaguarda das populações e dos bens da natureza”.

 

Assim, embora a Constituição de 1988 tenha sido “receptiva a uma reforma da estrutura agrária”, estabelecendo “salvaguardas e limites para o exercício do direito privado absoluto de propriedade, posse e uso da terra”, a força política constituída “pelos proprietários de terra, cadeias agroindustriais, e Estado” tem impedido a realização da reforma da estrutura agrária.

 

Por outro lado, “um projeto de desenvolvimento nacional requer a resgate do princípio da função social da propriedade fundiária, assegurado pela Constituição da República, que se compromete a proteger a sociedade da desigualdade fundiária, proteger a natureza da dilapidação, proteger os grupos étnicos e culturais para as quais a terra é essencial, proteger as próprias relações de trabalho das tendências regressivas à escravização”. O que exige realização de uma “reforma agrária” que tenha “uma finalidade econômica e social progressista”.

 

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Da Redação:

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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