Correio da Cidadania

Mais socialismo

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A vitória de forças políticas progressistas e socialistas para governos da América Latina tem colocado os comunistas e socialistas diante da necessidade de aproximar a teoria abstrata das condições concretas. Na Bolívia, por exemplo, com populações ainda vivendo em sistemas econômicos e sociais comunitários ancestrais dos povos indígenas, aparentados do comunismo primitivo, o socialismo parece precisar de um viés também comunitário.

 

García Linera, vice-presidente daquele país, acredita que o “socialismo é a potencialização do comunitário em sua base expansiva no marco da vontade da sociedade, como antítese do capitalismo”. Para ele, “no socialismo haverá uma só administração da riqueza que tem a chave do futuro, a comunitária que só surge e se expande tendo por base a ação voluntária dos trabalhadores, pelo exemplo e experiência voluntária da própria sociedade”. A ação do Estado revolucionário, portanto, deve consistir em “expandir e fortalecer esse modelo que surge dos produtores que decidem assumir o controle de seu trabalho numa ‘escala expansiva’”.

 

Apesar disso, Linera toma o cuidado de se precaver contra qualquer otimismo ao afirmar que  “o socialismo é um ‘longo’ processo de transição”. Nesse processo, “o Estado revolucionário e os movimentos sociais se fundem para que se democratizem novas decisões e que as atividades econômicas entrem na lógica comunitária”, evitando a “lógica do lucro”. O futuro, portanto, “será um tipo de socialismo comunitário, nacional, ambiental e, a longo prazo, planetário, que incorporará os conhecimentos e as práticas indígenas de diálogo e convivência com a Mãe Terra”.

 

Portanto, o socialismo seria o “campo de batalha”, “dentro de cada território nacional, entre uma civilização dominante – o capitalismo, ainda vigente e majoritário, mas decadente – contra uma civilização comunitária emergente”. Não é, pois, “uma nova civilização, economia ou sociedade, porém o ‘desdobramento democrático’ em mãos da sociedade organizada em movimentos sociais e a ‘superação da democracia fóssil’ na qual os governados apenas elegem os governantes”.

 

Em outras palavras, Linera reconhece o socialismo como a sociedade nacional em que ocorre a “batalha” entre a propriedade privada, ou o modo de produção capitalista, e a propriedade social, ou o modo de produção comunista. Sua perspectiva é que tal sociedade tenda para a civilização comunitária, que na Bolívia tem suas raízes fincadas no  comunismo primitivo de suas populações indígenas.

 

É nessa perspectiva que Linera convoca todos a considerar o socialismo como uma “democracia representativa no Parlamento”. Tudo com mais “democracia comunitária nas comunidades agrárias e urbanas”, mais “democracia nas ruas e nas fábricas”. E tudo, “por sua vez, em meio a um governo de um Estado dos movimentos sociais”, porque o socialismo se dá quando “a democracia atravessa todas as atividades cotidianas das pessoas, desde a economia até a educação, além da luta nacional, continental e internacional pela ampliação dos bens comuns”.

 

Dito de outro modo, Linera considera que o resultado daquela “batalha” entre os dois modos de produção que convivem de forma antagônica na sociedade boliviana depende da potencialização da democracia em todos os aspectos da vida social, e do Estado ter um profundo caráter social e democrático. No entanto, talvez por questões de ordem tática, Linera não tratou do possível aspecto cooperativo dos dois modos de produção no processo de desenvolvimento socialista.

 

O modo de produção capitalista tem um papel histórico no desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, na incorporação da ciência e da tecnologia aos processos produtivos, agrícolas e industriais. E tal papel não pode ser abortado administrativa ou prematuramente, mesmo que o Estado seja obrigado a intervir cotidianamente para evitar que o caos do mercado se instale na sociedade.

 

Por outro lado, há a necessidade de elevar a produção para atender às crescentes necessidades sociais, o que tende a pressionar “as práticas indígenas de diálogo e convivência com a Mãe Terra”. Essa contradição só pode ser resolvida através do uso intensivo das ciências e das tecnologias, tornando imprescindível certa cooperação dos modos comunitários de produção com o modo de produção capitalista. Portanto, cooperação e luta, aliança e luta, entre os modos de produção conflitantes presentes na sociedade socialista, tende a ser um cenário cuja experiência na Bolívia poderá ser útil para o futuro da luta por aquilo que Linera chama de “civilização comunitária”.

 

No Brasil, essa “civilização comunitária” talvez esteja presente em apenas 0,1% da população. Embora existam experiências de cooperativismo e de economia solidária, apontando para uma economia e uma sociedade de tipo diferente, tais experiências ainda são extremamente minoritárias. Predomina de forma avassaladora o capitalismo, na indústria, agricultura, comércio e serviços, tendo como setores hegemônicos grandes grupos empresariais que funcionam em sistema de cartel, como vem sendo espontaneamente colocado a nu pela operação Lava-Jato, quanto ao setor de construção pesada, e pela corrupção no sistema ferroviário paulista, no setor de máquinas pesadas.

 

Paradoxalmente, essa mesma operação policial e judicial pretende ser aproveitada pelos demais setores hegemônicos do capital para liquidar a Petrobras e demais estatais brasileiras, os únicos instrumentos com que conta o Estado para introduzir uma cunha social no modo de produção  capitalista vigente no país e promover a “batalha” entre a propriedade privada e a propriedade pública. Assim, do mesmo modo que na Bolívia, o sucesso nessa “batalha” depende da potencialização da democracia em todos os aspectos da vida social, e de o Estado ter um profundo caráter social e democrático.

 

Do ponto de vista imediato, essa “batalha” pelo socialismo no Brasil está sendo travada num contexto em que as forças políticas conservadoras e reacionárias, representantes do capitalismo oligopólico estrangeiro e nacional, estão em ofensiva contra o governo Dilma, mesmo num contexto em que tal governo mantém uma política de concessões ao neoliberalismo. Com mais clareza do que muitas forças de esquerda e socialistas, a expressão política do capital tem noção clara de que, no mundo de hoje, políticas que potencializem a democracia e deem ao Estado um caráter profundamente social e democrático, criando instrumentos econômicos, culturais e políticos correspondentes, tendem para o socialismo.

 

Mesmo que o socialismo mantenha a propriedade privada, estabelecendo relações de cooperação e luta com a propriedade pública, isso é abominável para os representantes do capital pelo simples fato de que eles perdem o domínio sobre a economia, ficam impedidos de praticar preços administrados, obter superlucros, e manejar o Estado em seu benefício exclusivo. Assim, colocando de lado as firulas e mistificações da atual situação brasileira, a presente “batalha” tem como motivações mais profundas o pré-sal petrolífero e o pré-sal socialista.

 

Wladimir Pomar é analista politico e escritor.

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