A crise socialista

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Wladimir Pomar
20/01/2015

 

 

Cláudio Katz, no texto a que fizemos referência no comentário anterior, considera que a adesão massiva ao que chama “projeto de emancipação” começou a claudicar com o levante na Hungria, as tensões sino-soviéticas, a rebelião do Solidariedade na Polônia, o sufocamento da Primavera Tchecoeslovaca e o questionamento dos regimes vigentes no bloco socialista. Ou seja, para ser mais preciso, começou a claudicar já nos anos 1950, década em que paradoxalmente, segundo ele, a balança se inclinava a favor dos sistemas não capitalistas, tanto nas taxas de crescimento quanto nos índices de desenvolvimento humano.

 

Katz afirma que tal balança era favorável porque a Rússia estaria “melhor do que a Turquia”, a China avançaria “mais do que a Índia” e a Europa do Leste não padeceria as desgraças da América Latina”. Embora nada disso queira dizer muito, ele considera que os resultados comparativos seriam “contundentes”, não só no PIB per capita, mas especialmente na qualidade de vida. As diferenças seriam evidentes no terreno da saúde (expectativa de vida) e da educação (níveis de alfabetização e escolaridade). Mesmo assim, a URSS e os países socialistas do leste europeu ruíram 30 a 40 anos depois.

 

Essa derrocada, e o consequente predomínio do neoliberalismo, teriam marcado “um giro radical em todas as tentativas de forjar uma sociedade pós-capitalista”. Para Katz, as causas dessa viragem residiriam nos “processos políticos”. Os governantes dos regimes socialistas não teriam apostado num “desenvolvimento comunista da sociedade”. Teriam visado sua “própria conversão em burgueses”, por “invejarem” (sic) o conforto dos milionários ocidentais e idealizarem o estilo de vida norte-americano.

 

Converteram-se em capitalistas, abandonando o “incômodo da maquiagem socialista”. A maioria da população preferia as “melhorias sociais alcançadas”, mas “se manteve inativa e tolerou a virada para o capitalismo”, “em virtude de décadas de desmobilização e despolitização cidadã”. A “apatia popular” teria resultado de “censuras e proibições” que a generalizaram. Por isso, “ninguém defendeu as conquistas sociais do velho sistema” quando este se autodestruiu. O “sufocamento burocrático da atividade popular” teria sido a principal causa da restauração capitalista.

 

Convenhamos que a equação de Katz não fecha. Ora ele fala de levantes, tensões, rebeliões, revoltas populares. Depois, da “inveja” da riqueza capitalista e a conversão dos dirigentes, apesar das conquistas sociais. Finalmente, da desmobilização, apatia e despolitização da população em virtude do sufocamento burocrático. Porém, last but not least, acrescenta ainda a baixa produtividade, o desabastecimento e a variedade escassa de bens de consumo. Afirma, porém, não ter havido qualquer drama de desemprego, endividamento pessoal ou exploração esgotante como a que assola os trabalhadores do Ocidente. Em vista disso, decreta que os problemas econômicos teriam ocupado um “lugar secundário”, embora os integrantes do bloco socialista não tenham logrado “consumar o catch up em relação às economias centrais”.

 

A “competição” da União Soviética frente aos Estados Unidos também não teria desempenhado qualquer papel importante porque a Rússia era uma “economia semiperiférica em desenvolvimento acelerado”. Ela teria suportado o fustigamento sistemático da principal potência do planeta, mas os dois países jamais teriam estado num mesmo plano. A guerra fria é que teria apresentado ambos como competidores equivalentes. E a aceitação dessa distorção pelos governantes russos teria diluído a diferença qualitativa que separava as duas economias. No entanto, para ser mais preciso, teria sido útil dizer que “competição” que os russos aceitaram era uma corrida armamentista nuclear, cujos custos foram incalculáveis.

 

Diante de todos esses argumentos, é preciso dizer que o primeiro erro de Katz consiste em não tratar corretamente a contradição entre a realidade de “economias semiperiféricas e periféricas” e a pretensão subjetiva de forjar “sociedades pós-capitalistas”. Ou seja, a contradição entre economias de desenvolvimento capitalista incompleto (Rússia, Tchecoslováquia), ou de desenvolvimento capitalista incipiente (China, Vietnã, Polônia etc) e a pretensão de nelas construir o comunismo ou o socialismo. Isto é, construir sociedades capazes de suprir as necessidades materiais e culturais de todos os seus membros ou, pelo menos, fornecer a cada um de acordo com seu trabalho.

 

Na prática, todos os países socialistas tentaram fazer o que os populistas (narodniks) russos defendiam: saltar sobre o capitalismo, evitando seus males. Marx discutiu essa impossibilidade com um dos seus principais dirigentes, Danielson, que traduziu O Capital para o russo. Lênin também tentou resolver o problema da revolução na semiperiferia através da Nova Política Econômica – NEP. Esta pressupunha a ação capitalista, sob tutela do Estado socialista, para desenvolver as forças produtivas. Além disso, ao contrário do que Katz afirma, em alguns casos (China, principalmente) houve ideologização, politização e mobilizações massivas para construir uma sociedade pós-capitalista. No entanto, tal tentativa se esvaiu porque, como dizia Marx, nenhuma sociedade sai da cena da história sem haver esgotado todas as suas possibilidades.

 

No caso da China (1978-80) e do Vietnã (1985-89), não foram apenas suas experiências extremas e esgotadas de politização e mobilizações massivas para construir uma sociedade pós-capitalista que os levaram a tentar outro caminho. Foi também a crescente crise sistêmica da economia política soviética que os fizeram projetar retiradas estratégicas e tentar, em escala muito mais ampla, o mesmo tipo de política tentada por Lênin na jovem União Soviética. Política que, em termos sucintos, visou resolver os problemas de produtividade, desabastecimento e variedade escassa de bens de consumo. Problemas que emperravam o desenvolvimento das forças produtivas e as condições de suprir as grandes massas do povo com os bens materiais e culturais demandados por elas.

 

Tanto os chineses quanto os vietnamitas e, agora, os cubanos, deram-se conta de que a economia política é o centro do problema de construção socialista em países atrasados. Por um lado, as forças produtivas precisam desenvolver-se. Para isso, precisam contar com diferentes tipos de propriedade, inclusive capitalistas, e com o mercado, para promover a circulação e a distribuição da produção. Liquidar a propriedade privada e o mercado não pode ser um ato administrativo. Depende do esgotamento do papel histórico dessas relações sociais. Por outro lado, é fundamental que o Estado não mude sua natureza socialista. Isto é, mantenha as empresas estatais das áreas estratégicas como instrumentos de orientação de toda a economia, e trate da geração do emprego e da redistribuição da renda como pontos fundamentais para contar com o apoio popular.

 

Apesar dessa retirada estratégica no sentido de aproveitar o capitalismo para desenvolver as forças produtivas, isso nada tem a ver com o pensamento de Hayek sobre o socialismo como um sistema que anula, através do Estado, o funcionamento natural da economia. O próprio capitalismo, através de Keynes, já havia demonstrado a necessidade do Estado para salvá-lo das crises cíclicas. Portanto, o Estado pode conquistar “autonomia” em situações em que, mesmo sob a hegemonia da burguesia, esta não sabe como salvar-se. E essa “autonomia” do Estado pode ser praticada ainda com mais vigor diante da burguesia se ele estiver sob a hegemonia dos trabalhadores.

 

A planificação estatal pode combinar-se com o mercado, ao contrário do que supunha Hayek, para orientar o funcionamento natural da economia. As empresas públicas (estatais e de outros tipos) devem competir com as empresas capitalistas e entre si, não só para estimular a produtividade e a concorrência, mas também para evitar o monopólio, em qualquer de suas manifestações. Com isso, as forças produtivas podem desenvolver-se de forma menos caótica do que no capitalismo, e a riqueza gerada pelo trabalho pode ser distribuída de forma menos desigual. Paralelamente, como resultado mais importante desse processo, tal desenvolvimento cria uma classe operária mais numerosa.

 

Visto dessa perspectiva, o erro crasso do modelo soviético de socialismo, após desativar a NEP para realizar a industrialização acelerada e poder enfrentar o perigo anunciado de invasão nazista, consistiu em acreditar que o Estado poderia continuar substituindo o mercado no período pós-guerra. E em acreditar, ainda, que tal modelo estatista poderia ser aplicado em todos os países da semiperiferia e da periferia para construir um sistema pós-capitalista. Aliás, o mesmo erro em que incorre Katz. Nesses países, para construir o socialismo, o Estado joga o papel fundamental se tiver conteúdo socialista.

 

Mas, queiramos ou não, para desenvolver as forças produtivas e criar as condições de riqueza social que tornem possível mirar a possibilidade real de uma sociedade pós-capitalista, esse Estado terá que contar com o concurso de diferentes tipos de propriedade e do mercado. E só a participação ativa da nova classe operária, forjada nesse desenvolvimento e na luta de classes, pode garantir que o Estado não mudará sua natureza socialista.

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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