Correio da Cidadania

Estados Unidos: atenuar os ânimos com a Rússia

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Conquanto o valor científico da geopolítica seja atualmente bastante desconsiderado em boa parte do globo, notadamente em decorrência da forma como foi utilizada no período da Alemanha nazista, ela ainda influencia formulações da política externa norte-americana, relacionadas à extensíssima região da Eurásia.

 

Nesse sentido, há uma convicção político-econômica de que a Rússia deveria estar relativamente afastada tanto da Alemanha como da China, porque todos eles integram uma vasta área considerada por tradicionais observadores e formuladores anglo-americanos como a mais estratégica do planeta, o chamado coração do mundo.

 

Esta porção continental é muita farta em recursos naturais, além de ser detentora do mercado consumidor e de mão-de-obra qualificada mais considerável do globo e possuidora de condições naturais extremamente favoráveis para uma rede de transportes integrada.

 

O aspecto militar desta visão de mundo no tocante à proteção natural da Eurásia, por causa de suas grandes cadeias de montanhas, por exemplo, não é mais considerado, em decorrência dos avanços da capacidade de destruição do setor aeronáutico.

 

De todo modo, as reflexões geopolíticas auxiliam a explicar o motivo por que os Estados Unidos quiseram instalar na Polônia, situada entre a antiga fronteira germano-soviética, um sistema antimíssil. O objetivo é interceptar hipotéticos mísseis balísticos intercontinentais do Irã ou mesmo da Coréia do Norte.

 

A proteção da maior parte da Europa Oriental origina-se da invocação do artigo quinto da constituição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – compromisso de defesa dos países-membros em caso de ataque.

 

Na realidade, tal sistema de defesa sinalizava mais hostilmente para a Rússia do que para os dois países por último mencionados, tendo em vista a insuficiência tecnológica destes para a produção de armas de tal porte, com autonomia de vôo superior a cinco mil quilômetros e com capacidade para carregar ogivas nucleares. Assim, a presença militar norte-americana naquela área é considerada fundamental por Washington para o equilíbrio de poder mundial.

 

Nesse sentido, a justificativa oficial não procederia, visto que Teerã não possui armamento de longo alcance, haja vista a sua concentração há anos no desenvolvimento de mísseis de curto e de médio alcance, com a eventual utilização voltada para o Oriente Médio, especificamente Israel, não para Europa ou África – os mísseis Sejil-2, com autonomia de cerca de 2500 quilômetros estão ainda na fase de testes.

 

Embora o Irã não se tenha tornado um país confiável quanto às suas ambições militares e nucleares, a Casa Branca decidiu, há algumas semanas, encerrar o programa de instalação do escudo antimíssil de grande porte, com dez unidades em solo polonês. Isso reforça o objetivo de que se pretendia anteriormente mais intimidar a Rússia do que Irã ou remotamente Coréia do Norte.

 

Conquanto provoque um aborrecimento temporário no governo polonês, ainda que haja a possibilidade de instalar um sistema antimíssil Patriot, e no tcheco, que abrigaria uma estação de radar de última geração, o recolhimento militar proporciona aos Estados Unidos a possibilidade real de retomar as combalidas negociações com a Rússia sobre a redução dos dispendiosos arsenais nucleares.

 

Esta, por seu turno, manifestou satisfação com o encaminhamento proporcionado por Washington, uma vez que posterga a instalação de equipamentos próximos à sua fronteira, em países considerados até alguns anos como uma fronteira natural.

 

Como garantia aos dois países aliados, a Casa Branca enviará unidades menores de interceptação, mas localizadas, de início, em navios de grande porte, o que permitiria maior mobilidade e maior utilização – a princípio, com no mínimo quarenta interceptadores.

 

Além do mais, tal manobra anteciparia o estabelecimento de outro sistema de defesa na região centro-européia. O original, idealizado durante o governo Bush, levaria quase uma década para efetivar-se totalmente. Com a versão atual proposta, a Polônia poderia acolher em 2015 uma base antimísseis – até 2011, a decisão deve vir à tona.

 

Quanto à estação de radar, há uma versão menos sofisticada, considerada, contudo, satisfatória pelas forças armadas estadunidenses, utilizada na Turquia.

 

No fim, o posicionamento do presidente Obama reflete uma postura salomônica, ao optar pela transformação no curto prazo de uma diretriz delicada do seu predecessor, dado que provocava a Rússia, sem, contudo, encerrá-la, como a ala mais moderada de seu partido, o Democrata, ansiava.

 

Assim, o Irã continua sendo avaliado como uma ameaça aos Estados Unidos e aos seus aliados, mas a forma pela qual a Casa Branca decidiu enfrentá-lo alterou-se, ao desconsiderar-se a Europa como palco de um conflito. Ao mesmo tempo, eliminou-se um ponto de atrito desnecessário com Moscou, insatisfeita com um projeto militar próximo de seu território.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

 

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