Estados Unidos: singularidade no tratamento aos inimigos

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Virgílio Arraes
24/03/2008

 

Em 1999, os Estados Unidos, via Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), endereçaram à antiga Iugoslávia - em meio a uma guerra civil por causa da tentativa de secessão do Kosovo para integrar-se provavelmente à Albânia em um futuro próximo - bombardeios incessantes durante quase dois meses e meio. Executou-se o ataque em decorrência da tergiversação da União Européia sobre qual medida deveria adotar diante do conflito.

 

A justificativa de Washington para a investida foi a necessidade de afirmar a primazia dos direitos humanos, acima mesmo do instituto da soberania, consagrado na política internacional a partir de 1648, quando da Paz de Vestfália. De início, note-se que vários países da OTAN condenaram tão somente o comportamento iugoslavo perante os kosovares, sem, por conseguinte, posicionar-se a favor de uma partilha territorial.

 

Tradicionalmente, a despeito de uma retórica de defesa ou de afirmação de valores, países principiam confrontações por dois motivos: por ganhos, como no caso da segunda versão do confronto no Golfo, com o propósito de resguardar fontes petrolíferas, ou por temor, como na época da Segunda Guerra Mundial, quando o Japão empreendeu um ataque preventivo a uma base naval dos Estados Unidos, localizada no Havaí, a fim de desestimular a entrada estadunidense no conflito.

 

Na Iugoslávia, nem uma coisa, nem outra; houve o rufar de tambores com o fito maior de promover-se uma guerra de doutrina ou de prestígio. O objetivo foi demonstrar a vontade da única hiperpotência, ávida de assegurar a marcha da democracia neoliberal rumo ao leste europeu por meio da exibição maciça de um poderio militar, aos olhos europeus, inigualável.

 

Da mesma forma que na primeira Guerra do Golfo (ocasião em que se haviam apresentado ao mundo os instrumentos, principalmente por meio da aeronáutica, de uma confrontação cirúrgica, ou seja, de uma precisão jamais alcançada na delimitação e destruição dos alvos), na Iugoslávia, renovou-se o método da seletividade com o emprego maciço, por exemplo, da tecnologia do GPS - geographic positioning system.

 

Não apenas instalações militares foram visadas, mas, de maneira geral, a infra-estrutura do centro político da Iugoslávia, a Sérvia. Finda a contenda, o país não seria capaz por si de financiar a reconstrução ou a dragagem dos escombros, tendo de recorrer a empréstimos junto a países ocidentais ou a organismos internacionais.

 

No Afeganistão e no Iraque, expôs-se à opinião pública internacional o mesmo discurso da eficiência tecnológica, a fim de minimizar as adversidades aos civis. À Aeronáutica, coube o papel principal. Diante dos reveses constantes das tropas no solo, a força aérea experimenta o emprego maior de aviões não tripulados para ações letais direcionadas para pessoas, não grupos – desenvolve-se esta tática desde os anos 80, sendo ela utilizada pela primeira vez no Panamá, em 1989, e posteriormente na Iugoslávia, em 1999.

 

Em tese, desde 1976, proíbem-se nos Estados Unidos assassínios políticos, salvo, na prática, contra nacionais de um país contra o qual se esteja em confrontação. Contudo, operações com mísseis hellfire ou tomahawk, com o fito de eliminar homens-chaves da Al-Qaeda, são efetivadas no Afeganistão, Iraque, Somália (encaminhados recentemente para Saleh Ali Saleh Nabhan, acusado dos atentados à embaixada norte-americana do Quênia e à da Tanzânia, em 1988) e até no aliado Paquistão – onde, na fronteira, se tentou em 2006, de modo infrutífero, assassinar Ayman Al-Zawahiri.

 

Avalia-se que cerca de 60 países abrigariam voluntária ou involuntariamente suspeitos de terrorismo e, desta forma, encaixar-se-iam na política de eliminação seletiva. A exatidão na demarcação do alvo é laboriosa – depende mesmo de informantes confiáveis - e desacertos não são incomuns. Em 2001, um comboio de líderes locais que se dirigia a Cabul, em sinal de apreço político ao Presidente Hamid Karzai, foi equivocadamente destroçado.

 

Um ponto importante deste tipo de ataque é se estaria ou não abarcado pela legislação norte-americana. A Lei de Autorização de Espionagem, de 1991, prevê que o presidente da República autorize missões secretas e sejam notificadas as comissões parlamentares vinculadas com o tema. No dia-a-dia, a Casa Branca argumenta que o combatimento ao terror dispensa determinados procedimentos burocráticos, visto que ele se destina a salvar vidas.

 

Por fim, a Pauta da Liberdade, proclamada pelo presidente George Bush, vai na direção oposta do seu próprio nome, ao menosprezar os fundamentos básicos do direito internacional relacionados com a maneira de investigar, deter, interrogar e sentenciar.

 

Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.

 

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