Distribuição de renda: botando o pingo no i

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Paulo Passarinho
24/06/2011

 

Continuo na linha de procurar enfocar alguns aspectos das políticas em vigor no país, procurando esclarecer mitos, equívocos e manipulações fartamente difundidos pelo governo e pela mídia dominante. Nas últimas semanas, já escrevi sobre as relações do país com o FMI, o real quadro do endividamento externo e o suposto progressismo da política externa brasileira.

 

Abordarei agora o processo de distribuição de renda no governo Lula, objeto de muita propaganda e legitimação do atual modelo econômico, baseado na abertura financeira, comercial e produtiva do país, e construído a partir da hegemonia de bancos e transnacionais na determinação dos rumos da política econômica.

 

Irei me basear no recém concluído estudo de Reinaldo Gonçalves – professor titular do Instituto de Economia da UFRJ – para expor algumas considerações e conclusões importantes sobre o que de fato aconteceu nos últimos anos.

 

Com o título “Redução da desigualdade da renda no governo Lula – Análise comparativa”, este trabalho apresenta sinteticamente dez conclusões:

 

1) Há tendência de queda da desigualdade da renda no Brasil no governo Lula ;

2) a redução da desigualdade da renda é fenômeno praticamente generalizado na América Latina no período 2003-2008;

3) o imperativo da governabilidade e a perpetuação no poder são os determinantes principais das políticas redistributivas na região, independente do modelo econômico-político vigente em cada país; ou seja, as políticas redistributivas são funcionais na luta pelo poder político;

4) sem mudanças estruturais (exemplo: reforma tributária) as principais políticas redistributivas, na América Latina em geral e no Brasil em particular, seguem a “linha de menor resistência”, visto que envolvem aumento do gasto público social e do salário mínimo real;

5) no período 2003-08 estas políticas foram condicionadas, em grande medida, pela evolução favorável da economia mundial, via afrouxamento da restrição das contas externas e das contas públicas;

6) a crise global em 2008-09 provoca reversão ou interrupção da tendência de queda da desigualdade na região;

7) em 2009, a desigualdade diminui no Brasil como resultado do extraordinário crescimento do salário mínimo real e da expansão dos gastos públicos sociais, no contexto do ciclo político e eleitoral e da política de estabilização frente à crise global no período;

8) no conjunto dos países do painel, que mostram melhores resultados quanto à redução da desigualdade, o Brasil ocupa a 3ª posição após a Venezuela (projeto de orientação socialista) e o Peru (projeto liberal);

9) Brasil, Honduras, Bolívia e Colômbia têm os mais elevados coeficientes de desigualdade na América Latina, que tem, na média, elevados coeficientes de desigualdade pelos padrões internacionais;

10) o Brasil experimenta melhora marginal na sua posição no ranking mundial dos países com maior grau de desigualdade entre meados da última década do século XX e meados da primeira década do século XXI, visto que sai da 4ª posição no ranking mundial dos países mais desiguais para a 5ª posição.

 

Para se chegar a essas conclusões, Reinaldo Gonçalves se utilizou de um painel comparativo de 12 países da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. As variáveis para análise foram o coeficiente de Gini, que varia de 0 (completa igualdade) a 1 (máxima concentração), e a razão da renda média per capita dos domicílios quintil 5 (20% mais ricos) e quintil 1 (20% mais pobres). As fontes de dados são da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), Banco Mundial e FMI (Fundo Monetário Internacional) e referem-se, de modo geral, ao período 2000-09. Os dados anuais para os coeficientes de desigualdade que não estão disponíveis foram calculados por interpolação geométrica.

 

Poderíamos lembrar que boa parte dessas conclusões não nos apresenta grandes novidades, em especial no que se refere à realidade brasileira. Contudo, quando esses resultados são contextualizados no panorama observável a partir de dados que comparam o ocorrido no período para esses doze países, constatamos que temos aqui no Brasil uma situação que não se difere qualitativamente ao que aconteceu na maior parte do nosso continente.

 

Cumpre também destacar que os dados que permitem aferir a distribuição de renda através do coeficiente de Gini são obtidos através das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, de responsabilidade do IBGE. Esses dados da chamada PNAD são, sabidamente, no que se refere às informações sobre renda familiar e pessoal, baseados preponderantemente nos rendimentos auferidos pelos trabalhadores – salários, diárias, comissões sobre vendas ou rendimentos de autônomos em geral. Os rendimentos tipicamente dos capitalistas – lucros, juros e aluguéis – não são adequadamente captados pelas PNADs, em decorrência das especificidades dessa pesquisa amostral.

 

Desse modo, esta é uma limitação objetiva desse tipo de levantamento. Porém, para efeito da comparação internacional que o estudo apresenta, os dados disponíveis são compatíveis com o objetivo do trabalho.

 

Outro aspecto metodológico importante se relaciona com a comparação entre a renda média per capita domiciliar entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres. Dadas as gritantes desigualdades de nossas sociedades, esses respectivos intervalos são, em si mesmos, bastante heterogêneos. Para um exemplo bem concreto, entre os 20% mais ricos do Brasil, iremos encontrar tanto os super-ricos brasileiros, cada vez mais participantes de listas que arrolam os “mais ricos do mundo”, quanto possivelmente boa parte dos que lêem esse artigo. Entretanto, essa é a comparação possível a partir dos dados que são utilizados por órgãos internacionais como o Banco Mundial e a Cepal.

 

Relevante aspecto a ser destacado nesse estudo do professor Reinaldo Gonçalves é que – dadas as condições da expansão da economia mundial no período 2003/2008 e do padrão de inserção internacional de nossos países –, independentemente da política econômica praticada em cada um deles, quase todos experimentaram avanços na distribuição de renda. As exceções, pela evolução do coeficiente de Gini, e levando-se em conta a comparação entre a situação observada no ano de 2000 e a média da década, foram Bolívia, Colômbia, Honduras e Uruguai. Pelo critério comparativo entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres, as exceções foram esses mesmos países, excluindo-se a Bolívia.

 

Por fim, em todos os países considerados existem programas de transferência de renda aos mais pobres, como é o caso do brasileiro Bolsa-Família. Os governos gastaram nesses programas, em porcentagem do PIB e no período considerado de 2007 a 2010, de 0,11% (Chile) a 0,51% (México). O Brasil aplicou o equivalente a 0,47%. Inspiração do Banco Mundial, em quase todos os nossos países esses programas procuram agregar aos seus nomes oficiais os vocábulos família, filho ou solidariedade. Não sabemos se esse fato se vincula às tradições cristãs – e de culpa – de nossas culturas.

 

A realidade é que em meados dos anos 1990, pelo critério do coeficiente de Gini, entre os cinco países mais desiguais do mundo, três se encontravam em nosso continente: Nicarágua, Brasil e Honduras. Agora, levando-se em conta a média dessa primeira década do século XXI, dentre os cinco países mais desiguais do mundo, quatro deles são latino-americanos: Colômbia, Bolívia, Honduras e Brasil.

 

Em suma, especialmente para o caso brasileiro, sem transformações de fato estruturais – reformas agrária, tributária, fiscal, previdenciária e dos serviços públicos –, com o foco voltado para a penalização dos ricos e o atendimento aos mais pobres, com políticas sociais universais, e não focalizadas nos miseráveis, dificilmente superaremos o estágio do subdesenvolvimento, apesar de toda a propaganda.

 

Leia mais
Redução da desigualdade da renda no governo Lula – Análise comparativa – Estudo de Reinaldo Gonçalves

 

 


Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.

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