Desprivatizar o Banco Central, e o Governo

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Paulo Passarinho
01/05/2010

 

A decisão do Banco Central não surpreendeu, apesar de revoltante. A própria Ata da última reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central já havia deixado claro que nesta reunião de abril a taxa Selic viria a ser elevada, mais uma vez.

 

Há semanas, assistimos a uma torrente de informações que nos dão conta de um ritmo de crescimento da atividade econômica, em diferentes setores da indústria e do comércio, interpretado como um sinal de aquecimento da economia acima do desejável.

 

Essa é a visão amplamente difundida como uma verdade absoluta pelos analistas e comentaristas das grandes redes de comunicação, com o suporte de economistas afinados com a política defendida pelo próprio Banco Central.

 

Alerta-se que a pressão de demanda ditada por esse ritmo de crescimento acabaria por pressionar o nível de preços, produzindo pressão inflacionária. Essa pressão faria com que a projeção da inflação futura, para esse ano, estivesse fugindo do centro da meta de inflação, definido para 2010 em 4,5%.

 

Alegava-se, antes do anúncio da elevação da taxa básica de juros de 8,75% para 9,5% ao ano, que havia uma "ampla convergência de opiniões para o entendimento consensual sobre a necessidade da elevação da taxa de juros".

 

Com tanta tecnicalidade e com tanto consenso, parece ser essa a única interpretação existente para o atual momento por que passa a economia, especialmente para a imensa massa da população, naturalmente muito distante dos detalhes de temas como esse.

 

Porém, esse tipo de consenso é apenas uma figura de retórica para se reforçar a ordem dominante. Primeiramente, caberia destrinchar um pouco a visão pretensamente técnica da questão.

 

O atual ritmo de expansão da economia, na maior parte dos setores, procura ainda recuperar o nível de produção do momento anterior à crise. A própria pressão sobre os preços de produtos de determinados setores pode ser interpretada apenas como uma conseqüência temporária dessa reativação econômica, tendendo a se acomodar em relativamente curto espaço de tempo.

 

Não há nenhum dado consistente de elevação do nível de renda da população que nos permita projetar pressões indesejáveis de demanda, dada evidentemente a capacidade instalada de produção e as suas projeções de expansão.

 

A política monetária desenvolvida pelo Banco Central se baseia no chamado modelo de metas inflacionárias. Nesse modelo, a partir de uma determinada estimativa do produto potencial da economia, dado um ritmo projetado de expansão da economia, define-se uma faixa conveniente de variação para a estimativa de inflação futura. O objetivo da política monetária é, assim, procurar manipular os seus instrumentos, de modo a garantir que a taxa de inflação venha a se comportar dentro dos limites da faixa pré-estabelecida.

 

Para se aferir o ritmo da atividade da economia, assim como especialmente as expectativas inflacionárias, o Banco Central procura ouvir o próprio mercado, como forma de melhor sintonizar o manuseio dos seus instrumentos, sempre na busca de se alcançar o objetivo maior da política defendida, que é a contenção da taxa de inflação dentro dos limites desejados.

 

A idéia de um produto potencial da economia previamente estabelecido deve ser relativizada, em função de variáveis que são mutáveis, a partir inclusive da própria execução da política monetária. Dentre essas variáveis, destaca-se a própria taxa de juros, o preço do dinheiro, fundamental para um maior ou menor estímulo aos investimentos, motor para a expansão da capacidade de produção de qualquer economia.

 

Baixas taxas de juros, por exemplo, podem alterar por completo as condições de expansão da atividade econômica e o produto possível de ser atingido, em função do comportamento da taxa de investimento, que tende a reagir positivamente frente a uma reduzida taxa de juros.

 

Ao contrário, taxas elevadas de juros inibem o investimento, ao mesmo tempo em que podem, ao estimular a entrada de recursos externos na economia – conforme acontece na presente administração da política econômica do governo –, incentivar as importações e inibir exportações, em decorrência da valorização do Real, provocada pela liquidez externa.

 

Mas, o que aparentemente é apenas técnica, quando examinada à luz da prática, se mostra inteiramente revestida de sentido político, onde atores muito bem definidos acabam por dar as cartas do jogo.

 

Quando se menciona que o Banco Central procura ouvir o próprio mercado, as referências são agentes do mercado financeiro, analistas e técnicos de instituições financeiras, diretamente interessados nas decisões a serem tomadas pela autoridade monetária, que é – ou deveria sê-lo – o próprio Banco Central. A minha dúvida está relacionada a essa evidente dependência que passa a existir entre o órgão que deveria regular e fiscalizar o mercado financeiro e os interesses das instituições justamente a serem reguladas e fiscalizadas.

 

Produto potencial, estimativas do comportamento de preços e da inflação projetada, assim como as expectativas em relação às taxas de juros, ficam por conta e risco – e especialmente interesses – de instituições que vivem de ganhar dinheiro com as informações e decisões que deveriam ser de competência exclusiva e soberana do governo federal.

 

Em tempos onde aparentemente o Banco Central age de forma independente, a bandeira de ordem mais importante, nesse momento, muito bem poderia ser a da defesa da independência deste Banco Central em relação às instituições que o controlam na prática, que são do sistema privado financeiro. A bandeira a ser levantada poderia ser a da desprivatização do Banco Central.

 

Contudo, se tudo isso acontece, a responsabilidade é unicamente do próprio governo. O atual funcionamento e política do Banco Central é uma decorrência direta da opção de governabilidade adotada por Lula, antes mesmo de sua posse, que transferiu a responsabilidade do núcleo da política econômica aos interesses dominantes do setor financeiro.

 

A justificativa do Banco Central é que poderemos ter uma elevação da inflação neste ano e o remédio não pode ser outro que não o aumento da taxa de juros. Mas tudo se esclarece quando lembramos que quem opina sobre "expectativas inflacionárias" são agentes do mercado financeiro, assim como quem sugere o remédio são eles mesmos: os bancos e demais instituições do "mercado". Em suma, está tudo em casa, com o Banco Central patrocinando a festa de quem vende crédito e dinheiro.

 

Mas o problema não pára por aí. Nessa semana, em que mais uma vez o reajuste dos aposentados é colocado na berlinda, como uma ameaça às contas públicas, ninguém exige que o governo ou o seu banco central apontem a "fonte de recursos" para se cobrir o rombo que essa medida, de se elevar os juros, provoca no Orçamento da União.

 

Esta elevação da taxa Selic para 9,5%, em meio a taxas de juros baixíssimas ou até mesmo negativas pelo mundo afora, irá impactar ainda mais a pesada despesa com juros e amortizações que, apenas no ano passado, consumiu 35% dos recursos orçamentários da União.

 

O presidente Lula, que exigiu dos parlamentares que defendem um reajuste maior aos aposentados a fonte de recursos para o custeio do aumento de despesas que essa medida geraria, não teve o mesmo comportamento frente à decisão do Banco Central.

 

Sabem por quê? Por que essa conta é paga justamente com os recursos que deveriam ser aplicados na previdência, na saúde, na educação, nos transportes públicos ou na habitação popular.

 

É por isso, leitor, que todos esses serviços voltados à população andam de mal a pior, com um péssimo atendimento à população.

 

E, por isso, a bandeira mais apropriada para o momento é a desprivatização não somente do Banco Central, mas, principalmente, do próprio governo.

 

Paulo Passarinho é economista e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.

 

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