Correio da Cidadania

A Crise e o Brasil

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A crise financeira internacional voltou a se manifestar com força. No espaço de apenas dez dias, foram necessárias três estatizações de vulto no templo maior do liberalismo – os Estados Unidos, envolvendo duas empresas gigantes de crédito imobiliário e a maior seguradora do país, a AIG. Além disso, o terceiro maior banco de investimentos norte-americano, a tristemente famosa Merrill Lynch, foi vendido a preço de banana ao Bank of América. A quarta maior instituição desse tipo do país, o Lehman Brothers, contudo, não encontrou compradores e acabou por entrar em concordata. E o próprio segundo maior banco de investimentos dos EUA, o Morgan Stanley, encontra-se em campo na busca de algum novo sócio que possa evitar a sua própria falência.

 

Esses foram os sintomas mais recentes da aguda crise financeira que teve início no segundo semestre do ano passado, e que até agora não tem o seu limite definido. Esse, com certeza, é o dado que mais causa preocupação no momento. Afinal, desde agosto do ano passado, os Bancos Centrais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão têm coordenado ações em conjunto, e com o apoio de bancos centrais de outros países, procurando injetar recursos nos mercados financeiros como forma de garantir liquidez às instituições em dificuldades. Somente naquele semestre foram disponibilizados mais de US$ 1 trilhão de dólares. Na ocasião, afirmava-se que a crise estaria limitada ao setor de crédito imobiliário, que a mesma não necessariamente alcançaria o lado real da economia, e que economias emergentes, como a do Brasil, estariam descoladas dessa crise.

 

Já no primeiro semestre desse ano, o banco central americano bancou a aquisição do Bear Stearns – outro poderoso banco de investimento - pelo JPMorgan. Anteriormente, o governo americano já havia tomado medidas de estímulo à economia, reduzindo a taxa de juros, lançando um pacote fiscal de mais de US$ 100 bilhões de dólares para atender às famílias americanas atingidas pela crise, além da criação de linhas de crédito especiais para empréstimos de emergência a instituições financeiras não bancárias.

 

Tudo indica que o longo ciclo de descolamento da esfera financeira em relação à economia produtiva real está em xeque. Desde o início dos anos setenta, a partir do rompimento unilateral pelo governo dos Estados Unidos com os parâmetros de emissão monetária definidos pelo Acordo de Bretton Woods – o fim do padrão dólar-ouro -, os mercados financeiros se expandiram de forma espantosa.

 

Este é um processo, portanto, que vem de longe. O BIS – o Banco de Compensações Internacionais, uma espécie de central dos bancos centrais – estima um volume de ativos financeiros em circulação nas esferas especulativas de todo o mundo da ordem de US$ 600 trilhões. Este volume de direitos financeiros é dez vezes superior ao PIB mundial, estimado em US$ 60 trilhões.

 

Há muitos anos, diversos analistas alertam para os riscos crescentes de esta bolha especulativa estourar. Ao longo dos anos, várias outras crises se esboçaram, mas a atual é muito mais grave pela sua extensão, e pelo fato de envolver o coração financeiro da maior potência econômica do mundo.

 

O maior desafio desse momento será procurar reduzir esse descolamento entre a economia financeira e a economia produtiva real, e, ao menos para as autoridades norte-americanas, o caminho será o de colocar o Estado como gestor direto desse processo.

 

O velho método de socialização dos prejuízos, após a farra privada dos lucros fáceis, está de volta. Entretanto, o próprio jogo global das grandes potências econômicas deverá influenciar as decisões futuras dos dirigentes do Estado norte-americano, especialmente na área financeira. As estatizações que foram feitas em caráter emergencial, e sob o pretexto de se evitar a eclosão de uma crise sistêmica, poderão vir a desempenhar um papel reestruturante e permanente, na conformação de uma nova arquitetura econômica que se faz exigir, para a estabilidade do próprio capitalismo financeirizado.

 

Em termos produtivos e financeiros, a região asiática – sob o impulso do capital gerido e planejado pelo poderoso Estado chinês – é uma realidade e fonte de polarização e ameaça crescente à hegemonia americana, ainda que os laços de complementaridade entre esses dois pólos dinâmicos da economia mundial indiquem a tendência – e necessidade - de uma busca crescente de entendimentos e ações coordenadas entre os seus respectivos governos.

 

Para o Brasil, a agudização dessa crise internacional ocorre em um momento bastante delicado.

 

Conforme temos alertado, a deterioração das contas externas do país já é um fato dado. Nos primeiros sete meses desse ano, acumulamos um déficit nas transações correntes do país de US$ 19,5 bilhões, em um quadro onde o saldo comercial do país se reduz de forma grave, pressionado pelas despesas com importações, em crescimento acelerado e superior à expansão das exportações. Em 2006, o saldo comercial atingiu o valor recorde de US$ 46,5 bilhões; em 2007, esse saldo se reduziu para US$ 40 bilhões; e, até a segunda semana de setembro, o resultado positivo comercial do ano era de apenas US$ 18,5 bilhões, resultado 36,6% menor do que o obtido no mesmo período do ano passado.

 

A estimativa do IPEA, para o déficit que acumularemos no resultado da conta corrente do balanço de pagamentos neste ano, se situa entre a faixa de US$ 27,5 bilhões e US$ 34,5 bilhões. Isto nos obrigará, mais uma vez, a voltar a depender da conta de capital para o fechamento de nossas contas externas.

 

Em um quadro de retração do crédito internacional, repatriamento de capitais estrangeiros aplicados no país e elevação da percepção de risco, passaremos a conviver em uma delicada conjuntura financeira interna.

 

O Banco Central já anunciou o retorno de operações de compra da moeda americana, com o objetivo de se evitar um descontrolado processo de desvalorização do real, que apenas em três semanas deste mês de setembro já chegou a 18%.

 

Este ajuste do câmbio não seria de todo ruim, dada a necessidade de favorecimento das receitas de exportação. Contudo, no contexto de saída acelerada de recursos externos aplicados nas bolsas e em títulos, este é um indicador nada tranqüilizador e poderá acelerar a tendência de fuga de capitais. Além disso, a desaceleração ou recessão da economia global poderá afetar as exportações do país, pela redução já em curso do preço das commodities, como também pelo próprio volume de mercadorias transacionadas.

 

O presidente Lula, no auge de sua popularidade, chegou a afirmar que a crise externa é imperceptível no país. Pode ser apenas mais uma frase de efeito. Porém, pode ser também apenas um recurso defensivo ao fato de ter ele optado pela manutenção de uma política econômica que, mantendo a fé cega no papel do mercado e dos capitais externos, como principais indutores ao nosso desenvolvimento, poderá nos levar a novas dificuldades.

 

A realidade é que abrimos mão, pelas opções de Lula, de alterar a política e o modelo econômico em curso, em uma conjuntura extremamente favorável para a busca de alternativas. A exuberância da economia internacional a partir de 2002/2003, em combinação com as transformações políticas em curso na América Latina, nos daria plenas condições de uma exitosa transição do falido modelo dos bancos e transnacionais para um outro tipo de economia, menos dependente do exterior, e de maior valorização do trabalho e elevação dos mecanismos de poupança interna.

 

Perdemos uma oportunidade histórica ímpar, e os próximos meses nos mostrarão a dimensão desse gravíssimo erro.

 

Paulo Passarinho é economista e vice-presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro.

 

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