Correio da Cidadania

Impasse e Crise

0
0
0
s2sdefault

 

 

A campanha eleitoral foi dura. A disputa presidencial, especialmente no segundo turno, dividiu o país e aguçou os gritantes conflitos que nossa sociedade – desigual e injusta – produz no seu dia-a-dia. Acima de tudo, preconceitos de natureza ideológica e social ganharam relevância, particularmente no ódio que embalou a expectativa que setores da oposição de direita alimentaram, na esperança em derrotar a coalizão comandada pelo PT.

 

Substantivamente, contudo, quais são os pecados capitais do governo que se reelegeu, sob o ponto de vista da direita? Não somente pelo resultado das urnas, mas levando-se em conta o financiamento privado e empresarial da campanha, Dilma Rousseff também foi a eleita, a grande vitoriosa, arrecadando – de construtoras, bancos e exportadores - alguns milhões a mais do que o seu adversário.

 

Como é sabido, o PT, ao vencer as eleições para o governo federal, em 2002, mudou a sua visão e suas propostas práticas para enfrentar a crise brasileira. Em relação à política econômica, optou pela manutenção dos chamados fundamentos impostos pelo FMI, desde o acordo do país com essa instituição, em 1999, bem como preservou a institucionalidade que nos foi deixada pela era FHC, com suas privatizações, liberalizações e flexibilizações. Nomeando um alto executivo de um banco estrangeiro para o comando do Banco Central (Henrique Meireles), buscou ganhar a confiança dos mercados financeiros e a obteve.

 

Esta estratégia escolhida por Lula e seus aliados aparentemente deu certo: aproveitando-se de uma conjuntura externa excepcional, o saldo da balança comercial do país bateu recordes sucessivos até 2007, o risco-país despencou, as captações de recursos financeiros no exterior, por parte de empresas brasileiras, dispararam e o mercado de crédito - no país com as mais altas taxas de juros do planeta - se ampliou significativamente.

 

A continuidade e ampliação da política de reajustes reais do salário-mínimo, a expansão dos programas de transferência de renda aos mais pobres e a implantação de mecanismos de crédito como o “empréstimo consignado” compatibilizaram a expansão do consumo interno com a preservação de uma ordem financeira e macroeconômica cruel, baseada na manutenção de juros reais elevadíssimos e uma taxa de câmbio supervalorizada.

 

Se a estratégia lulista foi bem sucedida, sob o ponto de vista de seus efeitos – com a ampliação do mercado interno, crescimento econômico um pouco mais elevado do que no governo FHC e elevação da renda dos mais pobres –, o preço que pagamos, como país, é altíssimo: a preservação do modelo econômico herdado dos anos noventa consolida a nossa dependência econômica, financeira e tecnológica, em relação aos países mais desenvolvidos; impõe a regressão industrial, que para muitos se confunde com desindustrialização; e torna-nos mais dependentes ainda das exportações do complexo agro-mineral, amarrando, dentre outras consequências, o nosso modelo agrícola ao latifúndio produtivo, turbinado por desmatamentos, monoculturas, agrotóxicos e transgênicos de todo tipo. Uma verdadeira tragédia.

 

Mas o quadro prevalecente até 2007, em relação à conjuntura internacional, se alterou por completo a partir de 2008, com a eclosão da crise financeira dos Estados Unidos e seus efeitos pelo mundo afora. O quadro externo favorável às economias exportadoras de commodities – como é o caso do Brasil – foi inteiramente alterado com a recessão que afetou os países centrais e a desaceleração das economias asiáticas, puxada pela China.

 

É neste contexto de mudança qualitativa do quadro externo que devemos entender os dilemas e dificuldades que marcaram o primeiro mandato presidencial de Dilma e que certamente continuará a incidir nas condições de governabilidade do seu próximo governo.

 

Dilma optou em seu governo pela tentação de repetir o desafio de manter a ordem macroeconômica ao gosto de bancos e multinacionais e, ao mesmo tempo, garantir a expansão do PIB através da ampliação do consumo interno, procurando preservar empregos, a renda dos trabalhadores e a capacidade de consumo das famílias. Entretanto, para o êxito de uma estratégia desse tipo, seria fundamental que novos investimentos turbinassem a dinâmica e o crescimento da economia. E é justamente neste aspecto que encontramos talvez a maior contradição e impasse do caminho escolhido por Dilma e seus aliados.

 

A taxa de investimento no Brasil situa-se hoje, em relação ao PIB, em torno de 16%. Trata-se de uma taxa extremamente baixa para um país que precisa ampliar a sua capacidade de produção, gerar empregos e responder às inúmeras lacunas sociais e de infraestrutura econômica que temos. Países em desenvolvimento, fortemente constrangidos pelas condições da economia internacional, devem, no seu esforço de superação do subdesenvolvimento e da dependência econômica, contar com o papel do Estado, para o planejamento, a alavancagem financeira e a iniciativa operacional de novos projetos. Esse seria uma espécie de bê-á-bá de uma política que buscasse um mínimo de soberania econômica, para um país secularmente dominado.

 

Porém, no léxico econômico dominante, hegemonizado ainda por um viés liberal, a ação direta do Estado ainda é uma heresia que, infelizmente, ainda predomina. Um bom exemplo disso é a demonização que, de forma oportunista, economistas liberais e a imprensa dominante procuram fazer com relação ao papel dos bancos públicos e a importante função que exerceram, aqui no país, durante a fase mais aguda da crise de 2008 e mesmo até os dias de hoje, garantindo linhas de crédito para os mais variados setores econômicos, com juros subsidiados.

 

O que ainda predomina é o pensamento que apenas o “mercado” – entenda-se: o mercado financeiro privado – deva investir e explorar novos negócios e oportunidades de investimento. Dentro desta visão, ao Estado caberia apenas a função de regular e criar as melhores condições possíveis para a rentabilidade dos capitais privados. Entretanto, para que o investimento produtivo privado venha a se realizar, cada vez mais se exige uma taxa de retorno que seja no mínimo compatível com a alta rentabilidade que variadas operações estritamente financeiras geram, neste país campeão de taxas reais de juros.

 

Portanto, esta estratégia de almejar o crescimento econômico a partir do investimento privado dependerá cada vez mais de concessões que venham a ser feitas ao capital. Neste contexto, não há dúvidas que irão crescer as pressões empresariais por mais facilidades e isenções fiscais, mudanças nas legislações trabalhista e previdenciária e garantias variadas que possam assegurar taxas de retorno elevadas.

 

Mesmo assim, frente às incertezas da economia mundial, há muito mais dificuldades do que possamos imaginar. Apesar das críticas que seu governo sofreu, dos setores da direita, durante a campanha eleitoral, Dilma Rousseff em seu primeiro mandato procurou seguir a cartilha das privatizações, ao gosto do mercado: abriu um dos maiores programas de concessão de serviços de infraestrutura em curso no mundo. Através de road-shows, procurou apresentar as vantagens e facilidades que seu governo oferecia a todos os investidores internacionais que viessem a apostar no Brasil e aqui investissem em estradas, portos, aeroportos ou ferrovias, através de seus capitais e do que ela chamava também de expertise na gestão operativa desses negócios, como se fôssemos idiotas incapazes. Uma verdadeira vergonha. Mesmo assim, há muitas dúvidas quanto aos efeitos desse caminho escolhido e o seu real retorno, em termos dos próprios investimentos e, especialmente, no bem estar e serviços adequados aos brasileiros.

 

A rigor, o grande dilema em que se debaterá este segundo mandato de Dilma relaciona-se ainda com as perigosas concessões políticas feitas, desde 2002, às pressões da lógica liberal. Essas concessões são incompatíveis com o apoio que os setores populares sustentam em relação ao atual governo e que foi decisivo para derrotar, mais uma vez, uma candidatura do PSDB.

 

Mais ainda: existe hoje no país uma latente e poderosa pressão por mudanças substantivas na forma e nos objetivos dos governos de plantão. Aspectos da própria institucionalidade estão na berlinda, embora não haja ainda esboçada nenhuma alternativa que se mostre viável, contra “tudo isso que aí está”. Mas, não há dúvida que a tampa da panela de pressão encontra-se em movimento e poderá, assim como ocorreu em junho de 2013, voltar a surpreender.

Paulo Passarinho, economista, é apresentador do Programa Faixa Livre.

Comentários   

0 #1 RE: Impasse e CriseNetho 07-12-2017 18:13
Estava escrito na decisão de Lula de optar por Dilma que o lulo-petismo caminhara para a sua Waterloo. Dilma, no máximo, e olhe lá, poderia ocupar uma secretaria executiva, e com muito favor, um ministério. Quem conheceu o seu desempenho por onde passou no Rio Grande não se atreveria a fazer a escolha que Lula fez. O tempo decorrido demonstrou que o erro que ameaça o futuro do lulo-petismo, da mesma forma que já arrasou o seu presente, tem a ver com a escolha unilateral e unipessoal de Dilma.
Citar
0
0
0
s2sdefault