Anistia ou não?

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Paulo Metri
16/01/2010

 

Com receio de só dizer o óbvio para não ferir suscetibilidades em assunto que mais parece um vespeiro, que todos relutam em mexer, movo-me com a esperança de estar ajudando a colocar uma visão social e política na questão, que permitirá o caminhar do conjunto dos brasileiros em um rumo realizador.

 

A luta histórica entre o capital e o trabalho sempre esteve presente no debate nacional, principalmente a partir do início do século passado, mas na maioria das vezes de forma implícita. Ideologias subsidiavam os debates e as disputas, contudo, as mais comuns não eram ideológicas, participando delas grupos sedentos do poder para usufruírem os benefícios que o domínio sobre a sociedade lhes trazia. Em muitos casos, um programa de desenvolvimento da sociedade era irrelevante, só tendo algum atrativo se significasse a possibilidade de prolongamento do tempo no poder. É triste, mas muitas das pessoas que podem realmente ajudar a sociedade a se desenvolver não se sentem atraídas pelo poder e não o disputam.

 

Máquinas de comunicação de massas, cujos recursos tecnológicos cresceram vertiginosamente ao longo do tempo, sempre auxiliaram as teses do capital. A classe política, com exceção de poucos dos seus membros, nunca representou, nem representa, o povo, que seria sua única razão de existência, representando tão somente grupos espoliadores da sociedade. Em vários momentos, ela fracassou, principalmente na promoção do nosso desenvolvimento social. Muitas das conquistas sociais e realizações econômicas ocorridas foram forçadas de cima para baixo por governantes com alguma sensibilidade social e não definidas pelo povo, como deveria ser. Golpes, escândalos e lutas de poder de grupos usurpadores da sociedade cansam sua mínima parcela esclarecida e comprometida socialmente, enquanto a maior parte do todo acredita que a vida política tem que ser assim mesmo.

 

As lutas políticas, no século passado, não envolviam só a dicotomia comunismo versus capitalismo. Envolviam, por exemplo, com as devidas dissimulações, a entrega dos nossos recursos naturais e nosso mercado para estrangeiros. Assim, havia o conflito entre nacionalistas e entreguistas. Como nunca deixou de existir, discutiam também os democratas e os autoritários. Estes eram alguns dos eixos de análise da época e cada elemento da sociedade podia se posicionar com qualquer combinação de escolhas nestes eixos.

 

Excetuando os anos presentes, os militares brasileiros sempre tenderam a se colocar no grupo autoritário e, às vezes, com a justificativa da necessidade de espantar outro grupo autoritário que rondava o poder. Existiram, sim, em momentos da nossa história, outros grupos autoritários, com a pretensão de representarem a sociedade, declarando quererem libertar o povo. Contudo, este, em parte formado por analfabetos, pouco politizados, carentes de tudo, não compreendia o que ocorria. Aliás, era mantido propositadamente mal informado, pois era mais fácil sua manipulação. Desta forma, o povo estava à margem do processo político, deixando muitos falarem em seu nome, o que nos leva a concluir que todos nós fracassamos e as lideranças e os políticos mais ainda.

 

Entre 1964 e 1985, quando os militares estiveram no poder, é surpreendente o crescimento econômico e da infra-estrutura ocorrido no país. Contudo, este período deixou a desejar com relação à melhoria de aspectos sociais, como a distribuição de renda, por exemplo. Quando um ministro da Fazenda do período militar declarou que era necessário primeiro fazer crescer o bolo para depois reparti-lo, ele esclarecia, representando o regime, que a prioridade era o desenvolvimento econômico e, em grau inferior, o desenvolvimento social. Como na maioria das vezes ocorre no nosso país, o direito a uma vida digna era relegado a um segundo plano.

 

Como ironia do destino, posteriormente, os militares foram traídos pelo capital, pois, depois de manterem as rentabilidades nos negócios bem altas nos seus anos de poder, receberam completa indiferença por parte dele assim que começaram a se tornar inviáveis à frente do governo. Dito de forma clara, sentindo que a continuação do modelo de enriquecimento não passava mais pelo uso dos militares no controle da sociedade e provando que não tem aliados eternos, mas sim interesses momentâneos, o capital migrou para um arremedo de democracia com controle sobre muitos políticos, através dos financiamentos de campanha, e com controle sobre o voto da sociedade, através da mídia, do marketing político e dos "deformadores" de opinião. Assim, quando o capital sentiu que os militares começavam a perder o controle do povo, até mesmo pela longa exposição deles, apoiou a mudança que não representava mudança alguma para ele, fazendo Tancredo e Sarney ganharem no Colégio Eleitoral.

 

A mutação genética do capital, em qualquer ponto do planeta, é admirável, pois sua característica usurpadora das sociedades prevalece à mudança dos tempos e costumes, e no Brasil não poderia ser diferente. Por outro lado, sociólogos deveriam estudar a razão que explica os militares, pelo menos até um passado recente, tenderem a ser conservadores, obviamente com algumas exceções. Por que esta opção preferencial pelo capital, inclusive sem se locupletarem? Esta indagação é ainda mais instigante porque a grande maioria deles, que atinge o oficialato, é oriunda das classes econômicas B e C, com alguns vindo mesmo da classe D, enquanto raríssimos são oriundos da classe A.

 

O capital a que este texto se refere é o capital sem rédeas, aquele do "laissez faire". Não me oponho ao sistema capitalista, até porque ele está na nossa Constituição. Como tenho o socialismo como meta de longo prazo a ser atingida pela sociedade politizada e consciente, contento-me em viver meus dias em um capitalismo vigiado, contido e de efeitos mitigados.

 

Respeito todos que combatiam o sistema ditatorial no plano ideológico e político, até pelos riscos de vida em que se envolviam. Respeito também todos aqueles que pegaram em armas para combater os militares neste período, primeiramente pelas suas coragens e em segundo lugar pelo idealismo da expressiva maioria. Entretanto, estes últimos foram de uma infelicidade incomum em suas decisões, porque a probabilidade de um conjunto ínfimo de combatentes despreparados vencer um exército, cuja razão de existência é estar preparado para o confronto, é mínima. Além disso, à medida que uma parcela dos opositores ao regime optou pela luta armada, deu no mesmo instante razão aos métodos violentos, ou seja, ratificou a prática da ditadura. Hoje, a morte de um vigilante durante o assalto a um banco praticado pelo movimento de resistência ser tratada como um crime, no mesmo nível dos assassinatos de integrantes da esquerda, não é fora de propósito, principalmente para a família do vigilante.

 

O ideal de uma parcela da esquerda daqueles anos era a implantação do regime comunista no Brasil, que também era um regime de força. Além da discussão sobre partido único e cerceamento dos direitos individuais, com esta opção haveria também a discussão sobre a transferência do Brasil, naqueles anos, da área de influência dos Estados Unidos para a da União Soviética. Entretanto, não nego que os ideais comunistas sejam meritórios.

 

Desse oceano de atos radicais e da falência total da atividade política, só poderia resultar um período improdutivo para nossa história, pois a nossa sociedade não cresceu, apesar dos indicadores econômicos serem positivos. Se for desejo da sociedade que haja uma catarse para ela poder entender o que aconteceu e, assim, nada do que for considerado errado poder mais ocorrer, que se faça a catarse. Entretanto, ela deve ser ampla, no sentido que torturadores e assassinos de pessoas de esquerda, assim como assassinos de vigilantes mortos em assaltos a bancos, sejam punidos.

 

Desta forma, iremos construir uma sociedade em que os guardiões das armas da sociedade saberão que elas não são deles e eles não podem fazer com elas o que quiserem. Só poderão usá-las para proteger a sociedade, a pedido dela, e nunca para machucá-la. Da mesma forma, nenhum grupo poderá cometer qualquer crime com alegação que ele ocorre para o bem da sociedade. Não existirá, assim como nunca existiu, a desculpa do crime do bem.

 

Faltam-me as filigranas jurídicas e, portanto, não debato inviabilidades de ações por falta de base legal. Contudo, depois de oito anos de governo FHC em que vários princípios legais foram revistos, inclusive alguns constitucionais, escritos poucos anos antes, qualquer determinação jurídica vale, no máximo, até pouco tempo depois da próxima eleição em que a oposição venha a ganhar.

 

A paz na sociedade brasileira precisa ser criada, principalmente sob os aspectos sociais e políticos, o mais rápido possível. Salvo engano, o prejuízo causado por se viver discutindo o passado demoradamente e sem decisão definitiva é se desarticularem as forças da sociedade para o enfrentamento do futuro. Precisamos proteger a sociedade brasileira do assédio usurpador das empresas estrangeiras, apoiadas por seus países de origem, para levarem nossos recursos naturais e auferirem lucros desbragados no nosso mercado, pagando poucos impostos e atendendo a poucas políticas públicas. Assim, precisamos da coesão da sociedade na oposição à usurpação, coesão esta que é vista nas sociedades dos países desenvolvidos nos momentos em que a proteção a ela é exigida.

 

Enquanto a decisão sobre o que fazer com relação ao passado não sai, os novos torturadores da sociedade brasileira estão agindo à solta no Brasil, com seus lobistas em diversas instâncias do governo, sendo bastante visíveis no Congresso Nacional, forçando a diminuição de recursos que iriam para o Estado para custear programas sociais e, em contrapartida, garantindo rentabilidade excepcional para as empresas, das quais muitas são estrangeiras. Estes novos torturadores forçam o salário médio dos brasileiros a baixar, as oportunidades de empregos e a arrecadação de tributos a diminuírem ao não comprarem produtos e serviços no país, ao não quererem desenvolver tecnologia aqui e ao só exportarem produtos primários do Brasil. Eles passam incólumes pelos denunciantes de atrocidades. Lamentavelmente, temos esta cizânia conosco que contribui para não crescermos como nação.

 

Apesar do imenso respeito a todos aqueles que sofreram no passado, proponho um plebiscito nacional para a sociedade decidir se deve existir um julgamento amplo do passado ou se deve prevalecer uma anistia ampla. Uma parte da sociedade está dividida com relação a esta questão e a outra não sabe de que se trata, caracterizando um assunto típico para ser questionado diretamente a ela, depois de um período de esclarecimento, em que as duas vertentes exporiam suas visões em horários gratuitos nas televisões. Este assunto é por demais vital para o crescimento da nossa sociedade para ficar à mercê de interpretações erráticas de Tribunais ou de eventuais maiorias do Congresso. Em qualquer situação, documentos históricos e ossadas precisam aparecer. Finalizando, é necessário existir brevidade na tomada de decisão, qualquer que ela seja, pois sua postergação infinita significa a acumulação na nossa sociedade atual de novos sofredores, não no nível de sofrimento do passado, mas também sofredores.

 

Paulo Metri é conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros.

 

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