Correio da Cidadania

Nova “democracia”

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Pretendem instaurar um novo modelo de “democracia” no país. O tradicional conceito de democracia representado por “um homem, um voto”, há tempos, já se transformou em “um homem, consciente ou ludibriado, um voto”. Os pensamentos de Edward Bernays (1891-1995) têm sido aplicados há muito tempo: “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder de controle do nosso país. (...) Nós somos governados, nossas mentes moldadas, nossos gostos formados, nossas ideias sugeridas, largamente por homens que nunca nem ouvimos falar. Esse é o resultado lógico da maneira pela qual a sociedade democrática é organizada. Números vastos de seres humanos devem cooperar dessa maneira se forem viver juntos em uma sociedade que funcione suavemente”.

 

Não bastando a tradicional manipulação, na neodemocracia pretende-se utilizar para a reprovação de qualquer alto escalão do poder o nível de decibéis dos bate-panelas nos bairros da classe média e da alta.

 

Quase todos os canais de TV aberta, as revistas Veja, Isto é e Época, os jornais O Globo, Folha e Estadão, e outras mídias deviam ter escutado, no passado, o som dos estômagos dos pobres e miseráveis. Hoje, estes estômagos estão mais silenciosos. Houve época em que eles ecoavam tão desesperados quanto as panelas dos batedores ecoam hoje. Além do número de estômagos roncando no passado ser muito maior que o de panelas açoitadas hoje, há outra diferença entre os dois casos: para o som das panelas, existem amplificadores, a mídia descrita.

 

Esta só amplifica os sons de interesse do seu dono, o capital. O som dos estômagos era consequência da perfeita aplicação do liberalismo econômico e, por isso mesmo, nunca foi amplificado, como também era abafado. No entanto, tinham ouvidos na nossa sociedade, como os de Lula, que conseguiam escutar o rosnar destes estômagos, tanto que ele retirou 36 milhões de pessoas da zona da miséria.

 

É interessante o fato de que existiram governos aos montes no Brasil até Lula aparecer. Eu só retiraria do conjunto, Getúlio e Jango, antes de afirmar que eles não ouviam nenhum som vindo dos estômagos ou, se ouviam, fingiam que não ouviam. É um escárnio quererem me convencer que o som das panelas é representativo do desejo da maior parte dos brasileiros.

 

Aliás, o que aconteceu com o sufrágio universal? Só falta mudarem a legislação para ser possível expulsar um presidente eleito pelo voto universal através de aparelhos de medição dos decibéis por funcionários da Justiça Eleitoral, em bairros escolhidos a dedo. Posteriormente, arma-se o circo eleitoral para nova eleição presidencial, para ver se a população, desta vez, acerta. Posição muito altruísta, esta da nossa elite.

 

A nova democracia pode também utilizar para expulsão de mandatários eleitos o número de pessoas presentes em manifestações, que são convocadas com múltiplos propósitos e forte apoio da mídia do capital, mas da qual se tira uma única conclusão: ser necessário retirar a presidente do poder antes do fim do seu mandato.

 

Há pessoas que vão às manifestações porque estão indignadas com a corrupção, que todos nós estamos. Aliás, corrupção esta que não é da presidente e ela não tolhe as investigações, como outro presidente tolheu com seu engavetador-geral e sua Polícia Federal castrada.

 

Estes dizem com a certeza que a ignorância ou o cinismo permite: “este governo é o mais corrupto de todos os tempos”. Como explicar a tais pessoas que existiram roubos muito maiores durante as privatizações, por exemplo? Contudo, as privatizações seguiram trâmites legais, salvo algumas que continham ilegalidades. Contrariando a maior parte do pensamento dos brasileiros, existem ações completamente legais que representam grandes injustiças. Nestes casos, a injustiça está dentro da própria lei, haja vista a lei 9.478, a do petróleo, extremamente injusta para com a sociedade brasileira. Mas, os juízes tendem a julgar só a legalidade das ações e, não, a justiça contida nelas.

 

Algumas pessoas vão às passeatas porque são favoráveis à diminuição da maioridade penal. Terceiros vão porque estão revoltados com os políticos em geral e são contra o arrocho fiscal, que eu também sou. Outros veem na ditadura a ordem e o fim dos roubos. Estes confundem ordem com silêncio forçado e fim dos roubos com o fim da divulgação deles, que ficam sem julgamento. Têm os que vão por razões das mais estapafúrdias.

 

Argumentam que, como a manifestação dos que supostamente querem o impeachment da presidente, apesar de ser juridicamente improvável, é mais expressiva que a manifestação dos que querem que ela fique, deve-se dar um jeito para expulsá-la, através de um golpe do Congresso ou militar ou, simplesmente, infernizando o governo dela e, de passagem, a vida dos brasileiros. Não quiseram instituir o recall para os governantes, quando o professor Comparato sugeriu. Agora, querem instituí-lo só para tirar do poder um inimigo político.

 

Os que foram às manifestações em que o branco, o verde e o amarelo imperavam, além da vontade de ir, tinham a possibilidade de ir. Será que não existiram pessoas que gostariam de ir à outra manifestação, a de cores escuras, mas tinham de dar um segundo expediente em casa, ou não tinham dinheiro para pagar mais uma condução, ou estavam exaustas devido ao trabalho cansativo, ou estavam dando plantão, ou não podiam deixar os filhos sozinhos para serem assediados pelo tráfico? Estes não são problemas do pessoal de roupas claras. Aliás, as pessoas de roupas claras tinham também a pele mais clara e as de roupas escuras tinham, na maioria, a pele mais escura.

 

Indo mais a fundo, têm as pessoas beneficiadas pela inclusão social dos últimos doze anos que deveriam apoiar a presidente do grupo que as beneficiou, mas elas ainda estão sem conhecimento da realidade política, graças ao inimigo público número um, a mídia do capital.

 

Estes são os próprios analfabetos políticos do Brecht. Extrapolando, todos os que foram retirados do mundo antes das suas vidas chegarem à média humana por estarem na faixa dos miseráveis, sem muito comer e sem tratamento de saúde, graças aos ineptos governos anteriores, podem ser considerados como virtuais marchantes da passeata de cores escuras. Alguém de sã consciência realmente acha que, como os claros estão mais disponíveis para caminhar, exibindo suas mesquinharias, devem, por isso ter suas pretensões atendidas? E o respeito aos 52% dos votos que Dilma recebeu? Como fica?

 

A total falta de solidariedade da elite, que quer o retorno à grande exclusão social do passado, é tão absurda quanto ilógica. Além de demonstrar não ter sensibilidade humana alguma, ela quer aplicar regras casuísticas, desde que um dos seus representantes chegue ao poder, quer piorar o índice de Gini, busca maximizar seus lucros, cria privilégios, acarreta tensão social, instabilidade política e impunidade para poderosos, ou seja, trata-se da volta ao passado.

 

Depois, ela vai ter seus filhos, sua família, vivendo neste país de angustiados, com uma diferença abissal entre ricos e pobres, com ostentação dos ricos e humilhação dos pobres. Enfim, ter uma sociedade justa acaba sendo uma questão de inteligência.

 

Leia também:

 

Fim de ciclo – Editorial

 

Não há como recuperar a legitimidade da política sem ruptura radical com Lula e Dilma – entrevista com o economista Reinaldo Gonçalves

 

A fórmula mágica da paz social se esgotou – Paulo Arantes, especial para o Correio

 

‘A depender de governo e oposição, caos social vai se aprofundar’ – entrevista com o historiador Marcelo Badaró

 

Agenda Brasil: o verdadeiro golpe – análise de Juliano Medeiros

 

Três crises... Falta uma – análise de Mauro Iasi


Dilemas da atual luta de classes – coluna de Wladimir Pomar


Manifestações em apoio a Dilma - Artigo de Otto Filgueiras

 

 

 

 

Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania.

Blog do autor: http://paulometri.blogspot.com.br

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