Na debacle do Iraque, os curdos vêm sua chance

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Luiz Eça
30/06/2014

 

 

Milícias sunitas, com o ISIL à frente, conquistam quase todo norte e centro do Iraque. Pretendem consolidar seu domínio, tomar esses territórios para si, fundando um novo país: o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, com pretensões de se estender pela Síria e até pela Jordânia.

 

Mas a ameaça representada pelo terrorismo do ISIL mobiliza os EUA, o Irã, o Reino Unido, a Rússia e a Síria.

 

Não é crível que o ISIL e os grupos sunitas que lutam a seu lado consigam manter os territórios tomados por muito mais tempo. Talvez possam concentrar-se numa área menor, mais fácil de defender e menos perigosa para os EUA e potências do Oriente Médio.

 

O mais provável é que o Iraque, com o forte poder de fogo dos seus apoiadores, acabará recuperando a maior parte dos territórios perdidos.

 

É crível que o governo de Bagdá tenha mais é que temer a criação de um país curdo independente no norte iraquiano.

 

Com língua, cultura e identidade nacional, os curdos jamais constituíram um estado independente. Há muitos séculos habitam regiões contíguas no hoje Iraque, Turquia, Síria, Jordânia e Irã. Todos esses países, com exceção do Irã, faziam parte do Império Otomano.

 

Com a derrota e extinção desse império na 1ª Guerra Mundial, os aliados criaram vários países no interior das fronteiras dele, inclusive um curdo, o Curdistão, todos submetidos a mandatos da França e da Inglaterra.

 

Mas parte do Curdistão foi logo conquistada pelo general Kamal Ataturk, ditador da nova República da Turquia. As outras partes foram anexadas à Síria, sob governo francês, e ao Iraque, sob domínio inglês.

 

Os curdos jamais abandonaram o sonho de ter um país independente. Na Turquia curda promoveram ataques e atentados contra as forças do governo, reprimidos sempre com extrema severidade.

 

Na Primeira Guerra do Golfo, com a retirada do exército iraquiano das áreas curdas, eles acabaram conseguindo um status de região autônoma, com governo e parlamento próprios.

 

Sua posição foi reforçada a partir de 2003, depois da invasão e ocupação do Iraque pelos exércitos de Bush e seu obediente Tony Blair.

 

Perseguidos na derrubada da ditadura sunita de Saddam Hussein, os xiitas, 65% da população, receberam bem as tropas estrangeiras. Na ocupação, a simpatia se transformou em ódio. Isso não aconteceu com os curdos.

 

Para eles, os norte-americanos eram mais do que libertadores da opressão de Saddam Hussein: eles prestigiaram os líderes curdos, reforçaram seus direitos perante o governo iraquiano e as esperanças de uma marcha gradual no caminho da independência.

 

Não eram vãs: um relatório das autoridades estadunidenses no Iraque havia afirmado: “o Curdistão poderá existir (como Estado livre) por volta de 2030”.

 

Na fase pós-retirada norte-americana, a região autônoma dos curdos tem encontrado grandes dificuldades para se desenvolver, devido a problemas com o governo do primeiro-ministro Maliki.

 

Além de não lhes dar uma posição adequada no ministério, ele lhes nega recurso, os trata a pão e água, alegando dificuldades financeiras.

 

A relação entre Bagdá e Erbil (capital da região curda) não é das melhores – longe disso.

 

No entanto, depois que o exército iraquiano fugiu e o ISIL tomou Mossul, ameaçando tomar também Kirkuk, as forças curdas vieram em socorro, derrotando os invasores.

 

Isso entusiasmou John Kerry, Secretário de Estado dos EUA. Depois de tentar convencer o primeiro-ministro Maliki a formar um novo governo, com representantes de todos os grupos, inclusive sunitas moderados e curdos, ele deu um pulo em Erbil.

 

Pediu a Mohamed Barzani, presidente da região autônoma curda, que também pressionasse Maliki, acenando com uma maior participação militar dos seus eficientes guerreiros na luta contra o ISIL.

 

Aproveitou para pedir a Barzani que não se entusiasmasse demais com a tomada de Kirkuk, nem pensasse em independência. Agora o necessário seria uma integração maior com Bagdá.

 

A ocasião não era nada adequada para pedidos norte-americanos. Os curdos andam muito irritados com eles. Há pouco tempo, Erbil e Bagdá estavam perto de uma guerra por causa de uma disputa sobre exportações curdas de petróleo.

 

Como o coração de Maliki tem balançado entre Obama e Rouhani, os EUA preferiram ficar ao lado dele por sólidas razões: o Iraque tem muito mais petróleo do que os curdos e sua posição na arena política do Oriente Médico é bem mais forte.

 

Barzani tinha outro agravo: os EUA demoravam a remover os partidos curdos KDP e PUK da sua lista de agremiações terroristas, embora fossem legais no Iraque e disputassem eleições. Havia promessas nesse sentido. Feitas há 11 anos...

 

De acordo com o website presidencial, Barzani respondeu a Kerry que “os curdos não se curvariam mais a Bagdá”.

 

Conforme informação de Falah Mustafa, chefe do Departamento de Relações Exteriores, “o presidente Barzani francamente disse que há agora uma nova realidade no Iraque e qualquer solução deve ser à luz dos desenvolvimentos dessa nova realidade”.

 

E a nova realidade é que os curdos estão muito satisfeitos em terem tomado posse de Kirkuk e cidades próximas.

 

Os curdos a consideram sua capital histórica. Eles a vinham disputando com árabes e turcomanos há mais de 70 anos. Aparentemente não pretendem sair de lá.

 

“Finalmente Kirkuk produzirá petróleo para os curdos”, disse Muhama Khalil, chefe da representação curda no comitê econômico do parlamento nacional iraquiano. Kirkuk é o mais importante centro petrolífero do norte do Iraque.

 

Anexando essa cidade e territórios da região, os curdos poderão aumentar muito sua produção de petróleo e a viabilidade de um Curdistão independente.

 

Por agora, isso ajudaria a resolver um gravíssimo problema financeiro que eles estão enfrentando. Um dia antes de o ISIL ocupar Mossul, o porta-voz do governo curdo anunciou que a região necessitava de uma receita mensal de 1 bilhão de dólares, o que supera os recursos disponíveis.

 

Depois da queda de Mossul, cerca de 300 mil xiitas e sunitas moderados fugiram da cidade para território curdo, já lotado com refugiados sírios e da província iraquiana de Anbar (também tomada pelo ISIL). O governo de Erbil teria de arcar com as despesas para o atendimento humanitário de todos esses refugiados.

 

Mais: com a conquista da região de Kirkuk pelo exército curdo, as fronteiras a serem protegidas contra o avanço do ISIL aumentam em 40%, implicando em mais gastos não previstos.

 

Todos estes fatores – a tomada de Kirkuk e territórios disputados, os novos problemas financeiros e a debacle do Iraque frente ao ISIL – somaram-se para reacender os sonhos de autonomia total dos curdos.

 

Expressos na entrevista do presidente Barzani quando ele declarou: “o tempo para o povo curdo determinar seu futuro é agora. E a decisão do povo nós vamos respeitar”.

 

Essa decisão já foi tomada. Dificilmente os EUA e o Irã irão respeitá-la. Para eles, retalhar o Iraque, no momento, está fora de questão. Seu foco é a destruição do ISIL – esse rato que ruge e morde como um leão.

Leia também:

Como os EUA destroem o Iraque e a Síria – por Ramez Philippe Maalouf

Crise no Iraque implode o projeto geoestratégico dos EUA para o Oriente Médio – por Achille Lollo

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

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