El Salvador: esquerda pragmática no poder

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Luiz Eça
20/03/2014

 

 

Derrotado por diferença mínima, o candidato presidencial da direita salvadorenha fez a habitual alegação de fraude e convocou o exército para “exercer seu papel”.

 

Tendo sido um ex-guerrilheiro o vencedor, este suspeito apelo poderia provocar ações armadas. Afinal, era América Central.

 

Mas passou direto, sem qualquer reação. Presidentes com antecedentes revolucionários já não assustam em El Salvador.

 

O anterior, Mauricio Funes, membro da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, como Sanchez Sender, o novo presidente, já tinham governado o país com moderação.

 

Ele privilegiou ações sociais, com programas que deram, por exemplo, sementes e fertilizantes grátis aos agricultores pobres; pensões aos velhos; uniformes, livros e sapatos aos estudantes sem recursos.

 

Mas o problema da segurança continuou extremamente grave. As gangues (as chamadas maras) pintaram e bordaram, explorando o narcotráfico.

 

De acordo com Roberto Rubio, da Fundação Nacional pelo Desenvolvimento, “o número de homicídios caiu, mas os criminosos ainda matam; agora enterram suas vítimas”. O que foi comprovado pela descoberta de um cemitério clandestino.

 

Maurício Funes não conseguiu recuperar a economia, nem criar novos empregos, num país profundamente lesado por uma guerra civil que durou 12 anos.

 

Para se ter uma ideia, El Salvador é um dos países centro-americanos mais dependentes das remessas de dinheiro de emigrantes nos EUA, que representam quase 20% da economia nacional.

 

Apesar do insucesso de Funes na área econômica, o povo não esqueceu os desastrosos três governos anteriores da ARENA – partido da elite – e preferiu votar num ex-guerrilheiro da FMNL.

 

Com o acordo de paz de 1992, ela se tornou um partido político, popular e progressista, mas não extremista. As propostas do presidente Sanchez Ceren consistem basicamente em aprofundar os programas sociais do seu antecessor.

 

Promete ainda incluir em seu gabinete oposicionistas competentes, como fez o presidente Mujica, no Uruguai. Realista, Cerem entende que, além de melhorar a vida dos mais pobres, é necessário promover o desenvolvimento da economia.

 

Reformas radicais não estão em seus planos. Coisa que a FMNL defendeu durante a luta contra as ditaduras e falsas democracias, no período entre 1980 e 1992.

 

Nessa guerra civil, as forças dos governos cometeram crimes odiosos. O mais escandaloso foi o assassinato do arcebispo de São Salvador, Oscar Romero.

 

Todos os domingos, Romero pregava na catedral contra as violações dos direitos humanos e as repressões brutais praticadas pelos soldados e esquadrões da morte.

 

Ele também denunciou o envolvimento dos EUA, por enviar bilhões de dólares em ajuda militar ao governo de El Salvador.

 

No dia 23 de março de 1980, Romero dirigiu-se aos soldados, dizendo: “Em nome de Deus. Em nome daquelas pessoas sofredoras, cujos gritos ecoam até o céu mais alto a cada dia, eu lhes imploro, eu lhes peço, eu lhes ordeno: parem com a repressão”.

 

No dia seguinte, ele foi assassinado por um pistoleiro, enquanto celebrava a missa.

 

O crime provocou imensa indignação internacional. Instituições de muitos países exigiram do governo pronta investigação e punição dos culpados.

 

Mas isso jamais ocorreu. Depois do fim da guerra civil, em 1993, a Comissão da Verdade em El Salvador da ONU concluiu que Robert d´Aubuisson, fundador da ARENA e dos esquadrões da morte, que liderava, “deu a ordem para assassinar o arcebispo a oficiais do exército”.

 

Alguns dias depois, o congresso local, controlado pela ARENA, editou uma lei de anistia, impedindo que d´Aubuisson fosse processado.

 

Em 2004, a Igreja Católica de El Salvador solicitou que o caso voltasse a ser investigado, mas o então presidente, Antonio Saca, negou-se, com base na lei de anistia e no desejo de evitar a abertura das velhas feridas da guerra civil.

 

Que, por sinal, eram muitas e muito graves; 75 mil pessoas foram mortas, 17 mil desapareceram e 1 milhão viajaram para outros países, fugindo da violência.

 

A Comissão da Verdade em El Salvador da ONU registrou mais de 22 mil queixas de violências políticas, somente entre janeiro de 1980 e julho de 1981.

 

Sessenta por cento eram de assassinatos sumários; 25% eram sequestros; e os demais, torturas; 85% atribuíam-se a atos do exército, polícia e esquadrões da morte; apenas 5% à FMNL.

 

O trabalho da comissão encerrou-se em julho de 1991, pois teve apenas três meses de prazo.

 

A participação dos EUA na repressão é inegável, fornecendo bilhões em armamentos e treinamento às forças armadas salvadorenhas.

 

Robert d´Aubuisson, por exemplo, graduou-se na Escola das Américas, um estabelecimento militar norte-americano especializado em contra-insurgência.

 

O US Bureau of Public Affairs justificou o apoio da Casa Branca deste modo: “O objetivo do exército e das forças de segurança salvadorenhas – e dos EUA nos anos 80 – era evitar a tomada do poder pela guerrilha esquerdista e suas organizações políticas aliadas (Department of State, Bureau of Public Affairs, 1985, Central America US policy)”.

 

O novo governo de El Salvador está disposto a esquecer esta página negra da história norte-americana, no apoio a ditaduras selvagens latino-americanas.

 

Não se espera dele na ONU votos a favor de Israel, dos drones e de outras causas duvidosas dos EUA.

 

Certamente formará ao lado dos governos progressistas da América Latina nas questões de interesse mútuo.

 

No entanto, o pragmático Ceren já demonstrou desejos de manter bom relacionamento com a Casa Branca, buscando obter ajuda e boa vontade para resolver os duros problemas econômicos e sociais de El Salvador.

 

É a nova face pragmática da esquerda. Voltada mais para o bem estar dos povos do que para a ideologia.

 

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Luiz Eça é jornalista.

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