A hipocrisia americana e o Irã

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Luiz Eça
30/11/2009

 

As visitas de Shimon Peres e Mahmoud Abbas ao Brasil não mereceram reparos nem da grande imprensa, nem dos intelectuais que passaram pelas mesas redondas e noticiários da TV. Mesmo os políticos de esquerda que vimos na emissora de TV do Senado trataram-nos com todo respeito.

 

Já com Ahmadinejad as coisas foram diferentes. Os meios de comunicação emitiram reprimendas ao governo por recebê-lo, além de veicularem acusações pesadas ao Irã da fina flor do conservadorismo americano e seus clones brasileiros.

 

Alguns comentaristas e políticos, no máximo, admitiram que a relação com o Irã pode trazer vantagens econômicas ao Brasil. Mas sempre insistindo na necessidade do governo Lula deixar bem clara sua oposição aos "graves desvios" iranianos, especialmente para manter-se fiel à amizade e aos princípios do nosso grande vizinho do norte.

O interessante, porém, é que uma breve análise mostra que os EUA praticam o mesmo tipo de ações que no Irã rotulam como demoníacas e ameaçadoras da paz mundial. A diferença é que, quando são de autoria americana, o Ocidente as vê com benevolência, sem nada de criticável.

 

Leia e tire suas conclusões

 

Torturas - Parece inegável que a polícia iraniana torturou participantes dos protestos contra as eleições. Só que nesse quesito os americanos ganham de dez a zero. Em Guantánamo, relatórios de ONGs e até do FBI provaram torturas aos detentos. Em Abu Ghraib, as brutalidades cometidas por soldados americanos chocaram o mundo. E os raptos de suspeitos no estrangeiro pela CIA para serem levados a países onde se tortura livremente foram flagrados em diversas ocasiões. Recentemente, um tribunal italiano condenou a penas de prisão agentes italianos e americanos que seqüestraram suspeito islamita e o levaram ao Egito onde foi devidamente torturado.

 

Eleições desonestas - No Irã continuam merecendo a indignação mundial. Mas não se deve esquecer que a primeira eleição de George Bush foi ganha no tapetão – não nas urnas.

 

Armas nucleares – Segundo El Baradei, chefe dos inspetores da ONU e Prêmio Nobel da Paz, não há sequer indícios de que o programa nuclear iraniano tenha objetivos militares.

 

Por outro lado, é de pleno conhecimento que Israel está muito avançado nesse setor, já dispondo de 150 a 200 artefatos nucleares, com capacidade de produzir 20 por ano, na base secreta de Dimona. Os EUA têm negado esse fato devido à emenda Symington, que proíbe ajuda americana a países que desenvolvam programas de enriquecimento nuclear fora do controle internacional. Por esta emenda, Obama teria de acabar com o envio anual de 2,5 bilhões de dólares a Israel.

 

Direitos Humanos - É fato que foram desrespeitados pelo exército e as milícias iranianas na repressão aos protestos contra as eleições presidenciais. Nesse assunto, de Direitos Humanos, as violações em Gaza foram muito mais graves: 1.500 árabes mortos, a maioria civis, inclusive centenas de crianças.

 

Investigando o que aconteceu no ataque, a comissão da ONU, presidida pelo juiz judeu Goldstone, respeitado internacionalmente, concluiu que o exército israelense cometeu crimes de guerra e contra a humanidade. Novamente os EUA defenderam o governo de Telaviv.

 

Contestaram o relatório final, sem fornecer um único argumento, e agora impedem que ele seja discutido no Conselho de Segurança da ONU. Apóiam o governo israelense que se nega a atender ao apelo, inclusive da França e da Inglaterra, para fazer uma investigação isenta sobre as acusações, identificando os culpados.

 

Outro desrespeito aos Direitos Humanos pelo governo dos EUA foi revelado na apresentação dos motivos para não fecharem Guantánamo no prazo dado por Obama: a necessidade de manter presos, sem julgamento, indivíduos considerados perigosos, pois não há provas capazes de condená-los.

 

Apoio ao terrorismo – Os EUA acusam o Irã de apoiar o Hizbollah e o Hamas, que consideram movimentos terroristas. Na verdade, ambos abandonaram o terrorismo há muitos anos. São hoje partidos políticos legais.

 

O Hizbollah defendeu o Líbano durante a última invasão israelense que causou a morte de 1.500 libaneses e destruiu parte da infra-estrutura do país. Recentemente, recebeu do governo libanês (apoiado pelo Ocidente) o direito de manter armas para proteger o país.

 

O Hamas governa Gaza e só começou a lançar foguetes sobre território israelense depois que o Telaviv fechou as fronteiras, causando uma verdadeira crise humanitária na região, que ficou privada de alimentos, medicamentos e materiais essenciais à sua economia.

 

Na verdade, quem ajudou terroristas foram os EUA. O governo George Bush supriu com recursos financeiros o movimento Jundalá, integrante da lista de terroristas dos próprios americanos e que atua na fronteira iraniana praticando atentados contra soldados, funcionários públicos e camponeses. Seu líder, Abdel Malik Regi, é assim descrito por Aléxis Debat, expert em contra terrorismo do Nixon Center: "Ele é parte traficante, parte talibã e parte ativista sunita".

 

Julgamentos de oposicionistas – Os acusados de liderar os protestos contra as eleições iranianas estão, de fato, sendo alvo de processos sumários com penas pesadas (cinco foram condenados à morte) e injustas.

 

Israel faz algo semelhante com acusados de ações terroristas. Muitos deles foram julgados secretamente (sem direito a advogados, portanto), não por tribunais, mas pelo Mossad. Tendo havido a aprovação do primeiro-ministro, seguiram-se as execuções dos presumíveis culpados, em casa ou na rua, através de mísseis disparados por aviões ou por raids de forças especiais, muitas vezes com a morte de pessoas que tiveram o azar de estar próximas. Trata-se, sem dúvida, de um rito processual mais próprio de Gengis Khan do que de um país civilizado. E que tem sido defendido pelos EUA como "direito de defesa" de Israel.

 

Além desses tipos de transgressões, compartilhados por Irã, EUA e Israel, algumas acusações, pautadas pela Casa Branca, foram repetidas à saciedade pelos seus seguidores no Brasil.

 

Assim, a negação do Holocausto é mostrada como algo criminoso. Eu diria que é absurda, que não faz honra à inteligência de Ahmadinejad. É mais uma afirmação demagógica, para agradar ao público islâmico de setores iletrados, indignado com o que os judeus fazem aos árabes na Palestina.

 

Como foi também a frase, "Israel deve ser varrido do mapa", a qual, porém, Ahmadinejad esclareceu. Disse que não pretende jogar os israelenses no mar... É, sim, contra o caráter racista do país, expresso, aliás, no início da sua Constituição: "Israel é um Estado democrático e judaico". Atacar o país seria uma loucura. Que chances teria contra as 200 bombas nucleares de Israel, sem falar do avassalador apoio militar americano? O que Ahmadinejad quis dizer é que a História tornará inviável o regime sionista e a Palestina (Israel + Cisjordânia) acabará se tornando um Estado de todos: judeus, islamitas e cristãos.

 

Acho que Israel não vai mudar. É um país que já existe há 41 anos como "lar nacional judaico", suas instituições estão plenamente consolidadas. Mas, defender a tese da injustiça e do fim inevitável de um Estado sionista e sua substituição por um país leigo e sem caráter racial é um direito, não um crime.

 

A criminalização do homossexualismo e a restrição aos direitos femininos no Irã são tristes realidades que vêm sendo paulatinamente ofuscadas pelo progresso da sociedade iraniana. São cada vez mais raros os casos de punições por questões de sexo, enquanto que as mulheres ganham cada vez mais espaços. Por exemplo: hoje existem mais universitárias do que universitários no Irã.

 

Não devemos esquecer que até os anos 70 havia até leis racistas nos Estados Unidos. Mesmo depois, o racismo sobreviveu, custando a desaparecer da sociedade americana, ainda que não completamente.

 

Não é preciso gastar muitas páginas para demonstrar que tudo que se critica no Irã é ou foi praticado pelos EUA, até mesmo com maior intensidade. No entanto, é tal o poder da hegemonia ianque que a maioria dos nossos jornais, intelectuais e políticos fazem vistas grossas a esta realidade. E competem entre si para imitar os grupos mais reacionários da terra do Tio Sam através da repetição das teses que interessam ao país do Norte, ainda que sejam contrárias a nós.

 

No caso da disputa com o Irã, a hipocrisia americana manifesta-se de uma maneira muito clara. E continua imperturbável, pois raros são aqueles detentores de poder no mundo que ousam denunciá-la.

 

Luiz Eça é jornalista.

 

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