Correio da Cidadania

A volta da ovelha negra

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Assad tem recepção calorosa com volta da Síria à Liga Árabe - Vermelho
A revolução síria originou-se da repressão violenta de cidadãos que exigiam democracia do governo Assad. Com o crescimento de manifestações e conflitos, formou-se, em 2011, uma oposição armada, integrada por civis liberais e desertores do exército sírio, a SDF, que se declarou em rebelião, em 2011.

Tendo sua imagem manchada por acusações de torturas, prisões ilegais e corrupção, Assad foi visto como a bête noire da região. Quase todos os países árabes romperam relações com a Síria e a expulsaram da Liga Árabe, deixando o país isolado, sem amigos no Oriente Médio.

Particularmente indignados com as ações do regime, os EUA, a Arábia Saudita, o Qatar e a Turquia viabilizaram a revolução, recrutando soldados e fornecendo armas, munições, treinamento e apoio logístico. Grande número de guerreiros de milícias jihadistas, como o Nusra, filial da Al Qaeda, aderiram ao movimento, que contou ainda com a participação militar dos curdos, que aspiravam conseguir a autonomia do seu território.

Nos primeiros anos, a revolução parecia vitoriosa, até que, em 2015, a intervenção das forças armadas russas, especialmente a aviação, virou o jogo. Posteriormente também se juntaram a Assad os milicianos do Hizbollah, movimento libanês aliado ao Irã. Assim reforçada, as tropas sírias recuperaram as regiões perdidas.

Hoje, elas dominam todas as cidades importantes, com exceção de Idlib, controlada pelo Hayat Tahrir al-Sham (novo nome do Nusra) e pela região autônoma dos curdos, no norte e leste, protegida por cerca de 900 soldados norte-americanos. Por ser essa região governada pelos curdos do PKK, protagonista de recente e sangrenta revolução na Turquia, o presidente Erdogan resolveu tomar as áreas mais próximas da fronteira com seu país, alegando razões de segurança.

A invasão obrigou os curdos a se retirar, sem luta, de zonas estratégicas, já que seu grande aliado, os EUA, sinalizaram que não os defenderiam. Para evitar problemas com os invasores, as tropas estadunidenses deixaram seus acampamentos, buscando colocar-se a uma distância considerável dos turcos.

Ao recuarem, elas pararam em Deir Ez-zor, região síria onde existem campos petrolíferos, antes ocupados pelo Estado Islâmico (EI).

Eram tempos de Donald Trump que, sem hesitação, resolveu apropriar-se do petróleo de Deir Ez-zor. Esclareceu que os soldados de Tio Sam tinham ocupado a área e suas instalações, não para os EUA, mas para enviar os recursos obtidos pelo petróleo para as forças dos curdos, evitando que caíssem nas mãos do EI.

Sugeriu que sua exploração poderia ser realizada através de “um negócio com a Exxon Mobil, ou uma das nossas grandes companhias”. Nenhuma das “grandes companhias” se interessou por esse negócio rocambolesco, que se apropriou de um território que fazia parte da Síria.

Trump escolheu uma empresa com menos de 1 ano de idade, a Delta Crescent Energy, a qual - digamos, por coincidência – era copropriedade de um parça do Pentágono, James Reese, ex-oficial da tropa de elite Delta Force. E lhe entregou o empreendimento. E para que Reese pudesse dormir tranquilo, os 900 soldados de Tio Sam ali estacionados estariam vigilantes.

Bem, ocupar territórios alheios e explorar sua produção é um crime internacional, um verdadeiro roubo, um atentado à soberania da Síria. Irrelevante para The Donald.
Para Biden também.

Ainda hoje o petróleo de áreas sírias continua jorrando em favor dos curdos e da empresa que o extrai, refina e comercializa (afinal, ninguém trabalha de graça), sob a guarda do exército dos EUA.

Não é pequeno o butim: cerca de 1/3 de toda a produção petrolífera da Síria. Hoje, a guerra da Síria já contabiliza 600 mil soldados mortos, 7 milhões de civis desalojados no interior da Síria e um número semelhante de refugiados no exterior.

Confinados em Idlib, os rebeldes do SDF, curdos e milícias jihadistas esperam um ataque que não vem, pois as forças armadas de Assad acham-se esgotadas e os russos se concentram na invasão da Ucrânia, enquanto os EUA e países aliados privilegiam a guerra contra Moscou.

Luta mesmo somente na região curda, periodicamente bombardeada pelos aviões turcos.
Neste momento, quando a guerra da Síria completa 12 anos de devastações e morticínios que têm abalado o mundo, aconteceu um fato que pode facilitar a busca da paz nessa guerra.

A Liga Árabe acaba de readmitir a Síria como seu membro com direitos totais. E quase todos os países árabes vêm gradativamente reatando suas relações com o regime de Damasco. Por enquanto, o Catar nega-se a fazer as pazes com Assad e aprovar sua readmissão à Liga Árabe.

Os EUA manifestaram-se do mesmo modo, afirmando que Assad não mudou e que só pensará em voltar às boas com ele se o governante sírio implantar um regime democrático, com liberdade para todos os oposicionistas, inclusive os que participaram da revolução, bem como eleições livres, supervisionadas por países confiáveis, além de direitos humanos levados a sério pelas autoridades atuais.

Sucede que Anthony Blinken, o secretário de Estado de Biden, foi um tanto dúbio ao informar à imprensa: “não mudou nossa posição de se opor à reconstrução da Síria até que haja um irresistível progresso para uma solução política”.

Tudo em nome da defesa dos direitos humanos, em nações onde estão longe de serem respeitados, como os autocráticos Egito, Polônia e Hungria, as ditaduras do Myanmar, Bahrein, Arábia Saudita, União dos Emirados Árabes e diversos países africanos. Não esquecer o amor sem limites de Biden a Israel, uma falsa democracia, onde impera o apartheid.

O governo norte-americano afirmou que, embora contrário, não atuará contra o reconhecimento dos países árabes ao regime sírio. Porém, não mencionou que os EUA continuariam a obstaculizar o reerguimento da Síria, suprimindo suas sanções, tão devastadoras que Alena Douhan, enviada especial da ONU, as qualificou como catastróficas para 90% da população, que vive na pobreza e tem acesso limitado a alimentos, água, eletricidade, combustível, habitação, saúde e transporte.

Seja como for, a volta de Assad ao mundo árabe sinaliza um abalo na hegemonia norte-americana no Oriente Médio.

Há muitos anos, os países árabes submetem suas políticas externas ao disposto por Washington. Em troca, os EUA prometem garantir sua segurança e chances de progressos, diante de possíveis ameaças externas e internas.

Com o tempo, esse arranjo, sempre benigno para os EUA, tornou-se um mau negócio para aqueles que o seguiam.

Por exemplo, a Arábia Saudita durante muitas décadas forneceu à América todo o petróleo de que a nação líder carecia, ganhando em contrapartida apoio político e o grande volume de armas modernas made in USA, necessárias a um país tão rico como a monarquia do deserto.

Acontece que, mais recentemente, os norte-americanos aumentaram significantemente sua produção de petróleo, o que os levou a reduzir as compras do produto saudita. A Arábia Saudita, por sua vez, não depende mais da indústria de armas americana, cujos concorrentes, Rússia, França, Alemanha e China estão sempre ansiosos para atender às solicitações de armas vindas da terra dos faraós.

Na sua obsessiva preocupação de liderar o mundo, os EUA veem competidores e seus aliados como inimigos, que devem ser aniquilados ou, pelo menos, transformados em potências frágeis, sem condições de incomodar o país de Jefferson.

Para essa luta, que se configura como perene, os países satélites árabes são convocados a participar, pois para Washington seus inimigos seriam também inimigos dos soi disant aliados.

Com a Síria, nação pró-Rússia, transformada num país pária, o Irã passou a ser o único fantasma capaz de assombrar as noites na Casa Branca. Alvo das devastadoras sanções, Teerã foi durante muitos anos considerado uma ameaça à estabilidade regional.

Atualmente, os líderes da maioria dos países árabes começam a abrir os olhos. Talvez o diabo não fosse tão feio como a Casa Branca o pinta. A ideia de substituir o antagonismo em relação ao Irã por boas relações com eles parece cada vez mais viável.

Esse novo modo de ver as coisas começou a ficar patente na viagem do então presidente Trump à Arábia Saudita. Num encontro com dirigentes dos bons aliados árabes, ele propôs a fundação de uma entidade que uniria todos eles em defesa dos seus regimes, supostamente ameaçados por Teerã.

Isso foi feito, mas durou pouco, apesar de suas luxuosas instalações. Logo os seguidores de Maomé caíram em si e foram se afastando.

Biden repetiu The Donald. Também quis convencer os dirigentes muçulmanos do perigo iraniano e da urgência em enfrentá-lo, unidos, sob o patrocínio de Washington. Desta vez, não deu nem para começar. A rejeição dos presentes foi unânime.

Nos meses seguintes, as coisas se precipitaram. A Arábia Saudita e o Irã, adversários jurados, sob inspiração da China, voltaram a ser amigos, estabelecendo relações diplomáticas completas.

Além disso, os sauditas também propuseram o ingresso do país de Assad na Liga Árabe. Exemplo que está sendo seguido pelos demais países árabes. Todos eles já afirmaram sua intenção de mediar o conflito entre Assad e oposição, estimulando as partes a assinarem um acordo de paz definitivo.

São boas as chances de dar certo. Mergulhada numa profunda crise, a Síria aspira pelo fim da guerra. Os opositores, por sua vez, pressionados pelas forças turcas, sabem que seu futuro não é nada promissor.

A Liga Árabe tem condições de centralizar as negociações de paz. Até agora, os EUA têm aceitado essa desconfortável movimentação, que diminui seu poder no Oriente Médio.

Breve, a tolerância estadunidense será posta à prova. Noticia-se que diversos desses países já estão entabulando negociações econômicas com o Irã e a Síria. Sanções dos EUA determinam que pessoas ou entidades que ousarem realizar operações econômicas com a Síria nunca mais poderão negociar com os EUA.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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