Correio da Cidadania

O Oriente Médio não tem mais dono

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O Oriente Médio não tem mais dono. Depois da 2ª guerra mundial, os EUA vieram laboriosamente conquistando a hegemonia sobre a região. Inicialmente, tiveram de se haver com a União Soviética, também ambicionando esta posição, que vinha apadrinhando países da região avessos ao costume, típico dos regimes imperiais, de intervir nos assuntos internos alheios.

Não deu certo. Prodigiosamente armado pelos americanos, seu “´proxy”, Israel, derrotou os árabes três vezes, provando a incapacidade da União Soviética de proteger seus aliados. Diante da realidade, vários deles mudaram-se para o bem cuidado rebanho de Washington, deixando Moscou falando sozinho.

Mais tarde, os rapazes de Washington tiveram de lidar com novos problemas, causados pelo Iraque de Saddam Hussein e a Síria de Assad, ambos agitando a bandeira do nacionalismo árabe.

A Casa Branca usou suas forças armadas e as de alguns diletos aliados para liquidar (wipe out) Saddam e, por tabela, as esperanças de desenvolvimento do Iraque, arruinando a infraestrutura local.

Quanto a Assad, o Pentágono treinou e armou milícias jihadistas que, associadas a grupos de oposicionistas liberais sírios, levantaram-se em armas contra o regime legal. Nesse benemérito trabalho, contou com as colaborações da Arábia Saudita, há muitos anos o amigo muçulmano mais chegado a Tio Sam.

Como o Iraque, a Síria foi também arrasada, perdeu 7 milhões de habitantes que migraram para fugir dos mísseis e tanques de guerra. Mas Assad venceu- recuperou o domínio de praticamente todo o país, graças ao retorno triunfal da aviação da Rússia aos céus do Oriente Médio.

O insucesso não afetou a amizade estreita entre EUA e Arábia Saudita, que continuou aliado especial dos EUA, tendo, desde os tempos da Guerra Fria, dito seu amem às decisões da política externa norte-americana.

A parceria EUA-Arábia Saudita construiu-se em torno do atendimento de importantes interesses de cada um desses países.

Os norte-americanos comprometiam-se a garantir a segurança do regime saudita, militarmente se necessário, o qual, em troca, garantiria o suprimento de todo o petróleo necessário ao governo de Washington, então o maior importador mundial do ouro negro.

Fim de uma era

Atualmente, as condições que cimentavam a parceria Riad-Washington deixaram de existir. Os EUA turbinaram sua produção de petróleo, tornaram-se um dos maiores produtores do mundo. Não dependem mais do petróleo saudita, cuja importação pela América caiu de 2 milhões de barris por dia, no começo dos anos 1990, para apenas 500 mil, em dezembro de 2021.

Apesar disso, os yankees tinham suas razões para continuarem privilegiando seu parceiro. A Arábia Saudita era considerada vital para combater o Irã, inimigo número 1 dos EUA no Oriente Médio.

O Irã disputa com a Arábia Saudita a liderança dos países árabes no Líbano, na Síria, no Iraque e no Iêmen, país onde o exército do rei Salman enfrenta os xiitas houthis, numa guerra devastadora, considerada a maior catástrofe humanitária atual.

Embora negasse, o Irã era visto como o fornecedor de armas modernas aos houthis. Como os misseis que, há dois anos, atingiram os campos de petróleo em território saudita, e eliminaram o equivalente a um dia de toda exportação petrolífera da monarquia de Riad.

Há sete anos, sauditas e iranianos cortaram todas as relações diplomáticas entre os dois países. Os vassalos do rei Salman posicionaram-se no lado contrário ao Irã, visto como a maior ameaça ao establishment local por seu poder militar e grande influência sobre milícias atuantes em grande parte do Oriente Médio.

Uma bravata absurda do ex-presidente Ahmadinejad (2005-2013), “Israel deve ser varrida do mapa”, serviu de pretexto para Telavive conseguir a proibição pela comunidade internacional do programa nuclear iraniano, acusando-o de visar a produção de bombas nucleares (embora até a inteligência dos EUA o considerasse pacífico) com o fim de destruir Israel.

Foi o fundamento da campanha sem tréguas do regime sionista, aliado a seu paternal amigo, os EUA e à maioria das monarquias árabes para isolar e mesmo derrubar o regime dos aiatolás.

No governo Trump, o grande poder econômico da Arábia Saudita e seu prestígio no mundo árabe tornaram sua adesão necessária para o sucesso dos Acordos Abraham. Obra do republicano, eles visavam o reconhecimento de Israel pelos países muçulmanos, e a criação de uma frente unida para enfrentar o “perigo iraniano”.

Durante todo o governo Trump, quando o apoio norte-americano a Israel atingiu seu clímax, atrair a Arábia Saudita era prioridade estadunidense e israelense. Mas, isso não rolou.

Com a eleição de Joe Biden, o governo de Washington manteve as pressões para levar o rei Salman a unir-se a seus pares na amizade a Israel. Nada feito, Riad continuou condicionando seu “sim” à criação de um Estado Palestino independente, inaceitável pelo regime sionista.

O início de uma nova era

Esperava-se muito da visita de Biden a Israel, em julho de 2022. Mas ele só ouviu frases desanimadoras dos chefes árabes. Anwar Gargach, conselheiro do líder dos Emirados Árabes Unidos, foi duro: “Estamos abertos para a cooperação. Mas não a uma cooperação atingindo outros países, especificamente o Irã”.

E Farhan al Saud, ministro do Exterior saudita, rejeitou a ideia de uma OTAN árabe anti-Irã. E lembrou que o rei Salman só assinaria a abertura de relações com Israel se o governo Netanyahu aceitasse a independência dos palestinos.

No princípio de março deste ano, de repente, as coisas pareciam se encaixar para os objetivos dos inimigos de Teerã. Os jornais dos EUA e de Israel anunciaram informações de oficiais anônimos de que os sauditas estavam solicitando aos estadunidenses garantias de segurança. E, mais importante, ajuda para criar uma indústria nuclear saudita.

Tudo atendido, a monarquia do deserto finalmente cederia aos apelos de Biden e Estados vassalos da região.

O principal lobista pró-Israel, Martin Indyk viajara para Telavive para informar os chefes locais das grandes novidades (New York Times,8/3/2023). Biden talvez tivesse problemas com o governo judaico - que deixaria de ser a única potência nuclear da região - mas, esses caras eram realistas, a aposta era de que topariam e as cobiçadas relações com Riad seriam celebradas.

A moribunda ideia da coalizão árabe-judaica iria reviver, levando os aiatolás a arrancar suas barbas de desespero. No dia seguinte, em 10 de março, a bomba explodiu, mas no lado contrário: Irã e Arábia Saudita estavam se reconciliando, reatando relações completas, cortadas em 2016.

Era o fim do sonho judaico de unir os reinos árabes contra o poder do Irã. Agora, eles tendiam a seguir a potência mais rica e poderosa do Oriente Médio, firmando também relações com o regime de Teerã.

Assim, a influência israelense no Oriente Médio deve cair substancialmente. Claro, Biden continuará fazendo as vontades abusivas do seu filho traquinas, mas este não terá nenhum amigo na região disposto a hostilizar o país dos aiatolás.

O novo tabuleiro

A grande mudança é que agora o Oriente Médio não tem mais um único dono. A ascendência dos EUA sobre os países locais deverá ser muito limitada. Certo que eles controlam Israel. E são dominantes no Egito, graças aos pesados fornecimentos de armas ao país de Ramsés III, e na Jordânia, onde o rei é fraco demais para sair da sombra ianque.

Mas terão de se conformar em compartilhar sua hegemonia com a Arábia Saudita, nos Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Bahrein, Sultanato de Omã e uns poucos países afro-árabes.

Rivais já se apropriaram da posição de influenciadores em parte do mapa do Oriente Médio. O Irã e a Rússia são quem fala alto no governo de Damasco, posição garantida pelo apoio militar desses dois países na guerra vitoriosa contra os rebeldes pró-EUA.

Não podemos esquecer a China, que patrocinou o acordo Irã-Arábia Saudita e está penetrando com grande força no Oriente Médio, com seus investimentos, empréstimos e doações generosos.

Ela já pôs um pé no Oriente Médio, assinando há dois anos um acordo que deve aplicar 400 bilhões de dólares no Irã, no espaço de 25 anos.

Agora, aproxima dois países de peso no Oriente Médio, antes irreconciliáveis inimigos entre si, um deles com dezenas de anos de fidelidade a Washington.

A China se credencia como um mediador eficiente numa região onde essa função vinha sendo exercida pelos EUA há muito tempo. Ultimamente, com parcos resultados. Não conseguiram resolver o problema causado pela retirada do governo Trump do acordo nuclear com o Irã; mantêm-se apáticos diante de uma crise palestina cada vez mais grave; fechou os olhos para a tomada (ilegal) por Israel do Golã, antes parte da Síria; retirou suas tropas do Afeganistão, deixando o país mergulhado na miséria, na falta de alimentos e de remédios e em um caos institucional.

A China tem por norma jamais intervir nas questões internas dos países onde investe seu dinheiro. Qualidade valorizada por países como a Arábia Saudita, a União dos Emirados Árabes, o Kuwait, o Sultanato de Omã e, evidentemente, o Irã. Países que aspiram ao direito de serem pragmáticos, não se subordinando aos interesses de potências imperiais.

Neste horizonte multipolar, que sucede à unipolaridade norte-americana, subsistem conflitos que opõem grupos pró-Irã a grupos pró-Arábia Saudita, principalmente no Iêmen, Emirados Árabes, Líbano e Bahrein.

Iranianos e sauditas precisam esquecer suas rixas e trocarem os socos e pontapés por abraços, não necessariamente calorosos. No Iêmen, a bola está com o Irã.
Em 2015, a Arábia Saudita invadiu o Iêmen em defesa do presidente Hadi, deposto pelos rebeldes houthis, transformando o país no maior desastre humanitário da atualidade, conforme a ONU.

Só para dar uma ideia da dimensão desta calamidade, metade dos habitantes vive sob o estigma da fome e das doenças, sendo que as agências da ONU calculam que até 400 mil crianças deverão morrer se as condições não mudarem (The Nation, 01/05/2021).

Os sauditas são os vilões da história, por terem movido dezenas de milhares de implacáveis bombardeios, um terço dos quais atingiu hospitais, escolas, moradias de civis e infraestrutura, lançando o país no horror da fome e da expansão das epidemias.

Os EUA sempre apoiaram os sauditas com armamentos, munições e inteligência, enquanto o Irã está com os houthis, através do Hizbollah, movimento controlado por Teerã, que lhes dá apoio armado significativo.

As tarefas dos novos protagonistas

O príncipe Mohamed, primeiro-ministro saudita, não vê a hora de acabar com a guerra por ser altamente impopular na área internacional e consumir bilhões de dólares.

Espera-se que os iranianos usem da sua ascendência sobre os houthis para convencê-los a depor as armas, aceitando um acordo de paz justo. O problema é que a Arábia Saudita não pode aparecer como derrotada nesse acordo. pois isso deixaria sua imagem internacional seriamente lesada.

Teerã vai ter uma dura tarefa para dobrar os houthis, ciosos de sua independência. Mas terá de se sair bem, caso contrário, o relacionamento com os reis do petróleo corre riscos.

No Líbano, onde os grupos políticos pró-sauditas e o Hizbollah (proxy de Teerã) são rivais de morte, uma conciliação parece mais fácil. Nasrallah, o líder do Hizbollah, já se manifestou com entusiasmo em apoio à normalização das relações do Irã com a Arábia Saudita.

Os Emirados Árabes têm uma posição dúbia diante do Irã. De um lado, já reabriram sua embaixada em Teerã e mantêm amplas relações econômicas com os aiatolás, do outro lado, apresenta-se como um aliado tradicional dos EUA, sendo um dos poucos países árabes que aderiu aos Acordos Abraham.

Os Emirados têm uma íntima relação de amizade com a Arábia Saudita, embora nem sempre assine embaixo das posições de Riad. Possivelmente a reconciliação árabe-iraniana vai refletir numa melhoria do relacionamento entre Teerã e Abu Dhabi, a capital da União dos Emirados Árabes.

O Bahrein é um país claramente alinhado com Riad, que chegou a mandar tropas para subjugar o movimento xiita rebelde local. No entanto, os EUA exercem controle absoluto da política externa do país.

Acusa-se o Irã de comandar as ações dos grupos xiitas que aspiram assumir o governo dessa monarquia, por serem maioria. Um férreo dispositivo de segurança tem reprimido os rebeldes e os defensores dos direitos humanos, bastante violados no país.

Fora o panorama do Iêmen, que continua carregado de nuvens, a reconciliação dos inimigos parece livre, não de chuvas, mas pelo menos de tempestades. Espera-se uma redução expressiva nos conflitos do Oriente Médio.

Com a região dividida entre várias hegemonias, a tendência é que as maiores potências compitam para atrair à sua rede de influência um maior número de países, usando menos o poder das armas e mais o das vantagens econômicas. Para o secretário de Estado, Anthony Blinken, a liderança dos EUA continua sendo essencial.

Em reunião no Comitê de Relações Exteriores do Senado, ele afirmou: “quando nós não estamos participando (das soluções), quando não lideramos, acontece uma de duas coisas: ou algum outro país tenta tomar nosso lugar, mas provavelmente não de uma maneira que avance nossos interesses ou valores, ou ninguém o faz, e então você tem o caos”.

Em nosso tempo, a diferença entre liderança e hegemonia parece ser mínima. Com um domínio unipolar, o caos já existe no Oriente Médio e incendeia a Cisjordânia, ocupada por Israel; no Irã, sob a economia devastada pela “máxima pressão” dos EUA; no Iêmen, que a guerra tornou a maior catástrofe da atualidade; no Afeganistão, de onde o exército norte-americano se retirou, deixando fome, miséria e fanatismo em seu lugar.

Em todos estes cenários nota-se o dedo da hegemonia dos EUA. A história avança para mudar esse quadro. Com a reconciliação Irã-Arábia Saudita vai ser difícil algum país se tornar dono do Oriente Médio.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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