Correio da Cidadania

Quem explodiu os gasodutos russos?

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US the culprit. Illustration: Liu Rui/GT


No início de fevereiro, o consagrado jornalista investigativo Seymour Hersh publicou em seu blog uma denúncia que atingiu profundamente a imagem dos EUA na gestão Biden: os EUA haviam explodido os gasodutos Nord Stream 1 e 2. Descrevendo as ações de preparação e a efetivação do ato criminoso com abundância de detalhes minuciosos, a acusação de Hersh deixou chocados os meios políticos e pessoas interessadas em política internacional, não só nos EUA, como em boa parte do mundo.

Antecedentes

Mas, vamos aos fatos. Desde 2011, o gasoduto russo Nord Stream 1 tinha papel relevante no crescimento industrial alemão, fornecendo-lhe gás natural a preços muito baixos.

Em 2015, a proprietária, a GAZPROM – empresa russa, com participação de empresas alemãs e de outros países – começou a construir o gasoduto Nord Stream 2, entre a Rússia e a Alemanha, com 1.240 quilômetros de extensão e condições de dobrar o volume de gás transportado pelo Nord Stream 1.

Esperava-se uma considerável expansão do consumo do gás russo. Juntos os Nord1 e Nord2 poderiam fornecer 110 milhões de m3 de gás, devendo garantir o atendimento de 50% das necessidades alemãs e grande parte do consumo de outros países do Continente.

As empresas europeias aguardavam a finalização da obra com grande interesse, ainda mais porque quando o Nord Stream 2 entrasse em operação os preços do gás russo, já baratos, deveriam cair ainda mais: 25%, segundo os consultores da World Mackenzie. 

Tal perspectiva era inaceitável para o então presidente, Donald Trump. Depois de investir contra os carros de luxo alemães, em defesa dos concorrentes norte-americanos, ele voltou suas armas contra o Nord 2.

Rugiu contra o domínio do mercado do gás natural pelos russos, que lhes daria força para influenciar os países da Europa. Seria do interesses deles aceitar essa situação. Por isso, todos os envolvidos na construção ou nos financiamentos do Nord Stream 2, tinham de se retirar, barrando de vez o lance russo.

Mas os europeus não se tocaram. Furioso, The Donald resolveu partir para a ignorância e providenciou pesadas sanções: quem não o obedecesse, não poderia jamais entrar nos EUA e teria bloqueados seus bens existentes no país de Tio Sam. Foi quando Mike Pompeo, seu secretário de Estado, advertiu os europeus: “Caiam fora, ou aguentem as consequências” (FrancePress, 20/7/2020).

Temendo “as consequências”, os países que participavam da construção do Nord Stream2 deixaram os russos na mão, forçando-os a arcar sozinhos com as obras que ainda faltavam.

Poucos meses depois, veio a eleição presidencial. Com a vitória de Biden, esperava-se que ele, defensor das leis internacionais, cancelasse o hands up do seu antecessor. Que nada, Biden não mexeu nesta herança de Trump.

E foi duro. O polido Anthony Blinken, seu secretário de Estado, repetiu o antecessor, Mike Pompeo, com palavras menos grosseiras: “O Departamento de Estado reitera que qualquer entidade envolvida no gasoduto Nord Stream 2 se arrisca a sofrer sanções dos EUA e deverá imediatamente abandonar o trabalho no gasoduto (CNBC, 18/3/2021)”.

Obrigada a assumir toda a responsabilidade pela conclusão do Nord Stream 2, a Rússia atrasou sua conclusão, o que só ocorreu em setembro de 2021. Mas os reguladores de energia da Suécia suspenderam o início de sus atividades, por razões pouco claras.

O preço do gás subiu 8% em poucos dias, pois temia-se que a suspensão do gasoduto e a possível guerra da Ucrânia gerassem a escassez do produto quando mais necessário: no inverno, que já começava a mostrar suas garras.

Atualidade

A partir daqui, passo a palavra a Seymour Hersh. Preliminarmente, esclareço que não se trata de um jornalista investigativo comum. Hersh é detentor do Prêmio Pulitzer, a maior honraria do jornalismo estadunidense.

Já produziu dezenas de artigos que deixaram de saia curta as autoridades envolvidas, entre as quais as denúncias do massacre de 500 civis vietnamitas, em My Lai, na Guerra do Vietnã e das barbaridades praticadas pela CIA na prisão de Abu Ghraib.

Apesar de ter baseado tudo o que escreveu em uma única fonte, localizada nas altas rodas do poder, Seymour Hersh tem sua credibilidade fortalecida pelo seu impecável passado profissional na revelação de fatos criminosos praticados por agentes do Estado.

Mas, a grande mídia norte-americana e europeia preferiu fazer de conta que não havia acontecido nada. Somente alguns jornais como The Times (inglês) e a revista Newsweek deram destaque ao escândalo.

A reação do governo Biden às acusações de Hersh foi simplesmente considerá-las “obra de ficção”. Como é natural, a Rússia aceitou a matéria que colocava Biden e seu governo no banco dos réus, exigindo uma investigação independente, proposta a que os EUA sequer deram atenção.

E, até hoje, não se falou mais no assunto. Diz a reportagem de Hersh que, em dezembro do ano retrasado, dois meses antes de a Rússia invadir a Ucrânia, Jake Sullivan, conselheiro especial do presidente, reuniu uma força tarefa, composta por membros do estado-maior conjunto das Forças Armadas, da CIA e dos departamentos de Estado (inclusive a sua subsecretária, Victoria Nuland) e do Tesouro, onde participou a decisão do presidente Biden de explodir os gasodutos Nord e pediu sugestões dos presentes.

Ficou claro que tudo seria absolutamente secreto. Como disse o informante de Seymour Hersh: “Se fosse possível rastrear o ataque chegando aos EUA seria um ato de guerra”.

Tendo isso em mente, membros da CIA trabalharam na elaboração de uma operação secreta para explodir os gasodutos Nord Stream 1 e 2, usando mergulhadores de águas profundas.

Segundo Hersh, no início de 2022, o grupo de trabalho da CIA informou à força-tarefa de Sullivan: “Temos uma maneira de explodir os oleodutos”. Até aí, tudo revelado refere-se às informações da fonte do jornalista.

No entanto, uma declaração pública de Biden parece comprovar que o presidente aprovou o atentado: em 7 de fevereiro, três semanas antes da invasão russa, Biden declarou em coletiva de imprensa: “Se a Rússia invadir... não haverá mais Nord Stream 2. Vamos acabar com isso”.

Três semanas antes, Victoria Noland, a subsecretária de Estado, já havia cantado no mesmo tom em reunião do departamento de Estado: “Quero ser muito clara com vocês, hoje. “Se a Rússia invadir a Ucrânia, de uma forma ou de outra o Nord Stream 2 não avançará”.

A essas alturas, o plano para explodir os dois gasodutos já se encontrava bastante avançado. Julgou-se que a Noruega seria o lugar perfeito para servir de base ao ataque, por sua localização próxima aos gasodutos.

Tratava-se de um firme aliado dos EUA, cuja amizade fora reforçada através de uma série de benefícios. Diz Seymour Hersh em sua reportagem: “O Pentágono criou empregos e contratos com altos salários... investindo centenas de milhões de dólares para atualizar e expandir as instalações da Marinha e da Força Aérea na Noruega”.

Citou ainda outros itens como: “Os EUA também expandiram vastamente uma base aérea norueguesa no norte e entregaram à força aérea norueguesa uma frota de aviões de patrulha P8 Poseidon construídos pela Boeing para reforçar sua espionagem de longo alcance em tudo o que se refere à Rússia”.

Os noruegueses, é claro, toparam a proposta da CIA. Como informa a reportagem de Hersh: “Em março, membros da equipe voaram para a Noruega para se reunir com o Serviço Secreto e a Marinha noruegueses.

Os noruegueses foram muito úteis. Indicaram o local certo para se colocar os explosivos nas águas do mar Báltico, a poucos quilômetros da ilha dinamarquesa de Bornholm. Os Nord Stream 1 e 2, separados entre si por pouco mais de um quilômetro e meio, se estendiam até o extremo nordeste da Alemanha, com apenas 80 metros de profundidade. O que estaria ao alcance dos mergulhadores. A eles cumpriria mergulhar de um caçador de minas norueguês e colocar cargas C4 em forma de planta nos quatro dutos dos dois Nord Stream.

Os noruegueses também sugeriram o momento ideal. Seria usar como cobertura o grande exercício da OTAN, realizado no mar Báltico, nos últimos 21 anos, no mês de junho, envolvendo dezenas de navios aliados.

Os planejadores do evento concordaram em acrescentar mais um exercício que funcionaria como disfarce do ataque secreto. Foi divulgado no programa como um exercício da Sexta Frota, com a participação dos “centros de pesquisa e guerra” da Marinha, a ser realizado na costa da ilha de Bornholm, envolvendo equipes de mergulhadores da OTAN.

E assim foram plantadas as bombas para, acionadas por controle remoto, liquidar os quatro gasodutos do Nord Stream1 e do Nord Stream 2.

O ato final verificou-se em 26 de setembro de 2022, quando um avião P8 da Marinha norueguesa, num voo aparentemente de rotina, lançou uma boia de sonar.

Explica a reportagem: “O sinal se espalhou debaixo d’água, inicialmente para o Nord Stream 2 e depois para o Nord Stream 1. Algumas horas depois, os explosivos C4 de alta potência foram acionados e três dos quatro gasodutos foram tirados de operação. Em poucos minutos, poças de gás metano que estavam nos dutos fechados puderam ser vistas se espalhando na superfície da água e o mundo soube que algo irreversível havia acontecido”.

Quem lucra?

No primeiro momento, estarrecida, a opinião pública viu o atentado como um mistério. Logo, a grande mídia dos EUA, alimentada por vazamentos calculados da Casa Branca, começou a apontar a Rússia como a provável autora.

Estava de brincadeira. Putin não era suicida. Jamais iria destruir um dos mais importantes ativos do seu país, que poderia ser usado para hostilizar seus inimigos. Essa ridícula versão não demorou a ser posta de lado. Por sua vez, Moscou esqueceu sua posição inicial de culpar a Inglaterra.

Formou-se rapidamente um grupo, com técnicos da Suécia, Dinamarca e Alemanha, para investigar o crime. Concluíram que fora uma sabotagem, praticada provavelmente por agentes de outro Estado. E ficaram por aí.

A opinião pública continua indagando, quem seria o criminoso? Na Roma Antiga, a chave era estabelecer cui bono? Ou seja: “quem se beneficiou?”

Não deve ter sido Andorra, Botswana ou as Ilhas Fiji. Por mais, que não gostassem do corte de cabelo de Putin, não ganharam nada com a supressão dos dois Nord Stream. Além de carecerem dos sofisticados recursos militares necessários para realizar uma empreitada de tal complexidade.

É inegável que os EUA se enquadram perfeitamente pois o governo Biden ganhou muito, mas muito mais do que se pede a Papai Noel desde tenra infância.

Com a liquidação dos Nord Stream foram para o ralo 11 bilhões de dólares em investimentos russos e Putin perdeu os fabulosos lucros que eles rendiam, permitindo que aplicasse bilhões e bilhões na construção de armamentos para a guerra da Ucrânia.

Além disso, foi graças à ação tão ousada quanto ilegal que Biden fez erguer aos céus os rendimentos das indústrias estadunidenses de gás liquefeito.

Pois, como se sabe, tendo os EUA e seus vassalos da OTAN sancionado o gás russo, as nações europeias, grandes consumidoras, viram-se obrigadas a buscar outros produtores, especialmente as indústrias norte-americanas de gás liquefeito.

Na verdade, nenhuma alternativa teria condições de substituir à altura o gás vindo da Rússia. Somando-se a algumas empresas de outros países com menos recursos, a indústria dos EUA apresentou-se como capaz de atender à maioria dos consumidores europeus.

Longe de ficarem agradecidos, eles andam rogando pragas contra os sucessores dos Nord Stream. Com o gás russo posto a escanteio por Biden, eles são obrigados a pagar preços até quatro vezes maiores pelo gás liquefeito de Tio Sam (Le Monde, 17/9/2023).

Já os empresários estadunidenses do setor vivem dias de euforia. Eles estão vendendo como nunca, apesar dos violentos preços que cobram. De uma parcela irrisória do consumo europeu, passaram a dominar 70%, virando líderes do mercado de gás.
Na situação atual, a Europa perde mais do que dinheiro. Perde vidas.

Segundo estudos recentes do The Economist, cerca de 120 mil cidadãos da União Europeia morreriam durante o primeiro ano da Guerra da Ucrânia, como resultado dos altos preços do gás nos seus países (Brussels Times, 2/12/2022).

Last but not least, com os gasodutos russos reduzidos a escombros, Moscou perderia sua capacidade de influenciar a Europa. E os EUA, com Biden no leme, fortaleceria ainda mais seu poder e sua liderança no Ocidente.

Benefício da dúvida

Toda essa elaboração, é claro, com base na crença de que a matéria de Seymour Hersh é absolutamente verdadeira, o que talvez seja precipitado. Ter apenas a seu favor informações de uma única fonte anônima não é suficiente para embasar acusações tão sérias.

No entanto, considerando a imagem respeitável do jornalista e a riqueza dos detalhes do planejamento e execução da explosão, estamos diante de um indício que justificaria uma investigação internacional independente.

É o que a Rússia vem pedindo. E os EUA tem recusado, talvez por ser culpado, talvez por não desejar que os fatos narrados se espalhem pelo mundo, poluindo sua imagem com o estigma da dúvida.

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Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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