Correio da Cidadania

Os primeiros disparos da segunda Guerra Fria

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“América primeiro não pode significar que os interesses da Europa venham em último”.

Assim disse Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, sobre lei que, aprovada pela Câmara dos Representantes, dependia ainda da aprovação do Senado e do presidente Trump.

Ele estava enganado. A lei, que pune a Rússia (além do Irã e da Coreia do Norte) passou batida no Senado (98 x 2). E a Casa Branca anunciou que Trump a sancionará. Por via dessa lei também as empresas europeias que negociam com os russos na área de energia serão punidas.

Várias empresas da Europa mantêm investimentos em 11 oleodutos, gasodutos e outros projetos de tal porte que, apenas nos gasodutos Nord Stream 1 e 2, chegam a 25 bilhões de libras (92 bilhões de reais).

Além disso, devem ser também contabilizadas as perdas das empresas importadoras de carvão da Rússia, a maior fornecedora do produto para a Europa.

A Alemanha, maior investidora nos projetos russos, perderia também segurança em gás, pois o novo gasoduto North Stream deve garantir o suprimento necessário ao país, pelo menos 40% de todo o gás que consome.

Hoje esta segurança é precária, pois o gasoduto russo existente passa pela Ucrânia, sendo sujeito a interrupções devido ao conflito entre Kiev e Moscou.

Vendo seus interesses ameaçados, Berlin foi o primeiro a protestar e ameaçar de retaliações, quando a lei das sanções ainda estava passando pela Casa dos Representantes dos EUA.

Ainda com algumas esperanças, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia advertira: “caso as novas sanções impostas à Rússia prejudiquem os tratado de associação com Moscou, a Europa agirá em questão de dias”. E concluiu: “a América primeiro não pode significar que os interesses da Europa venham em último”.

A Alemanha se fez ouvir, através do porta-voz do Ministro do Exterior, Martin Schaefer: “não tem a ver somente com a indústria alemã. As sanções contra a Rússia não devem se tornar uma ferramenta da política industrial (dos EUA) em favor dos interesses norte-americanos”.

Faz sentido. Um inocente não pode ser penalizado pelas culpas de um criminoso.

Mesmo porque tais culpas não podem ser consideradas líquidas e certas.
Washington está impondo sanções a Moscou sob a acusação de ter interferido nas eleições presidenciais, revelando e-mails danosos à reputação de Hillary Clinton.

Justificam sua posição nas conclusões de investigação de três das suas 17 agências de inteligência – a CIA, o FBI e a NSA – que não apresentam prova alguma, alegando nebulosa necessidade de sigilo.

Fosse provada, acima de qualquer suspeita, a culpa de Moscou, ainda assim não parece justo punir países europeus, por sinal aliados dos EUA, como se tratassem de cúmplices no delito.

As sanções anti-Rússia não podem ser também anti-Europa. Tanto a Itália quanto a França já se pronunciaram contra as novas sanções, enfatizando a necessidade de uma reação rápida.

Acredito que a União Europeia não ficará passiva diante das enormes perdas financeiras das suas empresas impostas pelas novas sanções contra os russos.

No entanto, por maiores somas perdidas pelas empresas europeias, por mais problemas que surjam no abastecimento de gás a seus países, os danos à Rússia serão certamente bem mais pesados.

Em entrevista à Reuters, Alexei Kudrin, o mais importante economista da Rússia, traçou um quadro sombrio.

Kudrin fora encarregado por Putin de planejar uma estratégia para acelerar o crescimento econômico depois de 2018.

Ele explicou que no governo Putin houve dois momentos opostos: nos primeiros anos da sua gestão a Rússia cresceu mais de 5%, porém, entre 2015 e 2016, houve sensível queda.

Este ano a economia deve crescer pouco mais de 1%. A partir de 2018, com a entrada da maior parte dos investimentos europeus nos projetos de oleodutos e gasodutos da Gazprom, projetava-se um aumento de 3,1% do PIB, índice que seria mantido pelos anos seguintes.

Para dar uma ideia da importância do setor de energia para a economia russa, ele representa 47% do total das exportações, sendo que 55% do seu volume destinam-se à Europa. E 47% do orçamento russo vêm de impostos e tributos sobre vendas de petróleo.

Com as novas sanções estadunidenses, o desenvolvimento do país será seriamente comprometido.

E não se espere que essas sanções possam cair a curto ou mesmo médio prazo. Na nova lei do Congresso, aprovada por Trump, o presidente dos EUA não terá poderes para revogar ou mesmo suavizar as sanções.

Trata-se der uma disposição que viola a constituição norte-americana, pois a política exterior é de competência dos presidentes. A única exceção é uma declaração de guerra, que necessita ser aprovada pelo Congresso.

Os defensores dessa usurpação de poderes alegam que as sanções são questões econômicas, não políticas, portanto, segundo as leis, os legisladores teriam direito de aplicar e blindar sanções a outros países.

Estão de brincadeira, é claro que no presente caso uma medida econômica está sendo usada com propósitos políticos: prejudicar a Rússia, como punição por sua possível interferência nas eleições estadunidenses.

Alexei Kudrin acha que as novas sanções pesarão sobre seu país durante décadas, restringindo o crescimento econômico e evitando que a Rússia recupere seu status de poder econômico líder.

Ele só vê uma solução: a adoção de profundas reformas econômicas. Algo semelhante ao ajuste fiscal, que o Brasil está sofrendo.

Entre as principais medidas necessárias estão: maior controle público sobre os agentes encarregados da execução das leis; aumento da idade mínima de aposentadoria; redução das participações do governo em empresas privadas; aperfeiçoamento da cobrança de impostos da economia informal; venda das participações estatais nas petrolíferas, num prazo entre seis e 10 anos; em período igual, venda de parte da maioria das ações do Estado no Sberbank, maior banco russo.

Para Kudrin, com as reformas, a Rússia poderia alcançar um crescimento econômico de 3% ou 4%, num prazo de cinco a seis anos, mesmo com as sanções continuando em vigor.

Sucede que a maioria destas medidas são impopulares e Putin deverá tentar se reeleger no pleito presidencial do ano que vem...

Efetivando as reformas propostas por Kudrin, será mais difícil a conquista de votos numa população descontente. Até a data das eleições, passarão muitos meses nos quais o povo russo sofrerá os efeitos das sanções e também das medidas duras das reformas, que ainda não poderão apresentar resultados positivos.

Ainda mais: caso Putin não reaja à altura contra esse autêntico ataque movido pelos EUA contra a Rússia, sua imagem ficará seriamente enfraquecida junto a um povo nacionalista e orgulhoso como o russo.

Reduzir o número de diplomatas e funcionários da embaixada norte-americana em Moscou, de 1,100 para 455, e fechar a praia exclusiva deles, não pode ser considerada uma retaliação à altura das devastadoras sanções.

Opções vigorosas estão disponíveis nos conflitos do Oriente Médio, na ONU e nas fronteiras com a OTAN e a Ucrânia.

Putin pode tomar posturas agressivas contra os aviões e bases dos EUA na Síria, e/ou apoiar com armamentos os rebeldes houthis no Iêmen, além do Hizbollah e do Hamas.

Pode ainda:

concentrar forças ainda mais poderosas nas fronteiras do leste, especialmente com a Ucrânia e a Lituânia;

apoiar decisivamente os separatistas do leste ucraniano;

contestar duramente os EUA na ONU, inclusive nas questões relativas à Coreia do Norte.

Decisões perigosas, pois na maioria delas os russos se arriscariam a entrar em confronto direto com forças militares norte-americanas. Os reflexos seriam imprevisíveis, até mesmo detonar uma guerra mundial.

Mais inteligente parece ser ampliar as relações com a China, através de alianças políticas e mesmo militares, apoiando Beijing nos seus contenciosos com estadunidenses e satélites na região do Mar da China. Ao mesmo tempo, aproximar-se da União Europeia, também alvejada pelas sanções, para concertar uma ação comum contra os EUA.

A segunda abordagem poderia ter até certo êxito, obter uma suavização das punições à Rússia e empresas associadas europeias.

O isolamento internacional face a um grande pacto de união Europa-Rússia, talvez com inclusão da China, causaria forte impacto nos EUA. Não dá para dizer se negativo ou positivo.

É duvidoso que a União Europeia aceite a transformação da Rússia de adversária a parceira. Ainda mais para enfrentar a superpotência. Moscou pode viver sem Washington, contando com os mercados europeus e chineses. Mas a Europa não pode viver sem os EUA, pois depende muito do seu mercado, fora uma série de profundas ligações nos mais diversos setores.

E a China, teria condições para retaliar economicamente os EUA? É uma pergunta ainda sem resposta.

Os chineses são profundamente pragmáticos e tudo indica que, por enquanto, não pensam em se indispor seriamente com Tio Sam.

Seja como for, agora EUA e Rússia são verdadeiros inimigos. As sanções são devastadores ataques contra a economia e os planos políticos do governo russo. E Putin, ainda que inicialmente aja com cautela, não vai desistir de contra-atacar com força igualmente destruidora. É mais do que uma guerra simplesmente econômica,

De fato, uma segunda Guerra Fria entre o império e uma poderosa potência recalcitrante.

Por enquanto, sem bombardeios aéreos, sem tanques, sem mísseis, sem canhões.

Até quando?

Luiz Eça

Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre política internacional.

Luiz Eça
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