Correio da Cidadania

Guerra do Iêmen: crime e vergonha

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Esquecendo um pouco as guerras da Síria e da Ucrânia, a ONU criou um comitê para examinar o que estava acontecendo na guerra do Iêmen, que já dura 10 meses, da qual se conheciam rumores preocupantes.

 

O alarme se justificava, e muito, conforme o relatório dessa comissão entregue em fins de outubro e obtido pela Associated Press.

 

Sua principal conclusão foi de que a Arábia Saudita e aliados cometeram graves violações dos direitos humanos, com ataques aéreos (o comitê identificou 109) que alvejaram civis (cerca de 4 mil mortos, inclusive 500 crianças) e moradias, inclusive campos de refugiados e famílias despojadas dos seus lares (uma em cada 10)); áreas residenciais; hospitais e outros centros de assistência médica; escolas, mesquitas; fábricas e depósitos; reuniões de civis, inclusive casamentos (ataque aéreo a um casamento matou 135 convidados); infraestrutura civil, inclusive ônibus, o aeroporto de Saana (a capital), portos e vias de trânsito interno.

 

E os sauditas ainda bloqueiam os portos, prolongando indefinidamente as inspeções dos navios de modo devastador para um país que importa 70% do seu combustível (em setembro, recebeu apenas 1% de suas necessidades, elevando o preço em 286% além do vigente antes da guerra), 90% dos alimentos e todos os equipamentos médicos de que necessita.

 

Segundo cálculos da ONU, 21 milhões de pessoas (numa população total de 22 milhões) não dispõem de serviços básicos. E mais de 1,5 milhão foram desapossadas.

 

E, para a UNICEF, mais de seis milhões de pessoas não tem comida suficiente, num país que ocupa o segundo lugar em subnutrição no mundo; 14 milhões se acham em insegurança alimentar – a metade severamente – ou seja, não sabem se amanhã terão o que comer; 80% da população acha-se em constante necessidade de alimentos, água e outros auxílios, segundo a ONU.

 

O que levou o Comitê da ONU a afirmar que a Arábia Saudita está deliberadamente matando os cidadãos iemenitas de fome com seus bombardeios e bloqueios.

 

Ela alega que sua guerra aérea tem méritos, pois visa repor o presidente eleito Hadi, destituído pelos rebeldes Houthis. Mais ou menos o argumento usado pela Rússia e o Irã na ajuda prestada ao governo Assad contra os rebeldes moderados e islâmicos.

 

Ao lado dos sauditas atuam forças militares do Egito e dos Emirados Árabes Unidos numa coalizão apoiada pelos EUA e o Reino Unido.

 

Os norte-americanos prestam serviços de inteligência e logística e principalmente exportam armamentos de todos os tipos.

 

Seus aviões e navios ajudam a bloquear a entrada de navios com alimentos e combustível, tendo até um porta-aviões prestado serviços nessa tarefa.

 

Em abril de 2015, por exemplo, forças navais estadunidenses impediram que 9 navios iranianos levassem suprimentos ao faminto povo iemenita.

 

Os Estados Unidos são também os maiores fornecedores de armamentos para a Arábia Saudita. Durante os últimos 5 anos nada menos do que 100 bilhões de dólares seguiram esse destino.

 

Na guerra, os armamentos continuam chegando: em outubro foram 11,25 bilhões em navios de combate, 1,29 bilhão em bombas de todos os tipos (inclusive as guiadas por laser e as arrasa-bunkers).

 

O governo Obama não hesita em reafirmar seu apoio total – político e militar – aos sauditas na guerra contra o Iêmen. Com isso, contraria a própria lei do seu país.

 

A Lei Leahy proíbe assistência militar a quaisquer forças militares ou de segurança “se o Secretário de Estado tem informações de críveis que tais unidades cometeram violentos abusos de direitos Humanos.”

 

O que foi mais explicitado pela seção 230 da USC 2 que diz : “nenhuma assistência de segurança pode ser fornecida a qualquer governo envolvido em consistente padrão de violentas infrações dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.

 

Não faltam evidências da prática desses delitos. Além das muitas denúncias de barbaridades cometidas pelos sauditas feitas por ONGs respeitáveis como a Anistia Internacional e o Human´s Rights Watch, o último relatório sobre direitos humanos do próprio Departamento de Estado Unidos dedicou 57 páginas detalhando as violações da monarquia saudita.

 

O senador Patrick Lehay, declarou no Foreign Police: “as informações sobre vítimas civis dos ataques aéreos sauditas nos levam a inquirir se estas operações, apoiadas pelos EUA, violam a lei Lehay”.

 

O Comitê da ONU acredita que sim.

 

Por que, então, os EUA, ditos defensores indômitos dos direitos humanos em todo o mundo, não só ignoram como também ajudam a Arábia Saudita a massacrar um dos povos mais sofridos do mundo? A vencê-los pela fome, pela sede, pela falta de assistência médica, pela falta de segurança... Pelo terror?

 

Ainda que as duvidosas explicações da Arábia Saudita justificassem sua intervenção em favor de um governo eleito (por sinal, numa eleição em que era o único candidato), nada justifica a violação sistemática dos direitos humanos, valor mundialmente reconhecido como fundamental pela civilização moderna.

 

Os motivos do governo Obama ter embarcado nessa barca podem ser pouco recomendáveis. Ninguém duvida que a decisão bélica da Arábia Saudita se prende à sua rivalidade com o Irã, pela hegemonia no Oriente Médio.

 

O governo de Riad teme a expansão do Irã, especialmente agora que faz as pazes com o Ocidente. Por isso mesmo, tendo assumido o controle dos movimentos rebeldes sírios, está sabotando a reunião de paz que se espera poder trazer a paz e a democracia à região. A possibilidade desse processo leva a um governo neutro ou até pró-Irã na Síria é inaceitável para os reis do petróleo.

 

Sendo os houthis apoiados pelo Irã (ambos são xiitas), tornava-se necessário defenestrá-los a qualquer custo. A inesperada resistência encontrada (o ataque começou em março/2015) implicou num aumento dos ataques e das violações.

 

Todas as tentativas de reuniões para por fim à guerra foram boicotadas pelos sauditas. A eles só interessa a rendição total que implicaria numa derrota do Irã. Que, por sinal, se está dando armas aos houthis, são poucas, porque o bloqueio torna esta ajuda muito difícil.

 

Aos norte-americanos isso vem a calhar.

 

Apesar de estar reiniciando relações com o Irã, sempre o vê com um pé atrás devido à sua política externa independente, que colide com o Pentágono na Síria, com o apoio militar iraniano ao governo Assad e no Líbano, através da ação militar do aliado Hizbollah, por sua vez, inimigo de morte de Israel.

 

Na guerra da Síria, ao mesmo tempo em que participa ao lado da Rússia dos esforços para se encontrar uma solução construtiva, John Kerry segue afirmando que Assad fora, mesmo apenas do previsto governo de transição, está fora de discussão. E a reunião de Genebra já pode começar fracassada.

 

Parece que a Casa Branca deseja exaurir os recursos da Rússia, combalidos pelas sanções pró-Ucrânia, vencendo-a por exaustão. Forçando-a a retirar seus aviões e deixar Assad entregue aos cães.

 

As indústrias armamentistas norte-americanas estão torcendo para que isso aconteça: Genebra fracasse e a guerra ainda demore bastante. Já ganharam muito com ela e poderiam ganhar ainda muito mais.

 

E não vamos esquecer que este setor da economia yankee produz um total de armas igual ao que todos os demais países do mundo juntos. E tem seus lucros defendidos pelo mais poderoso lobby, com um bando de fiéis congressistas sempre em busca de sua generosidade.

 

Há outros fatores que mantêm os EUA ao lado das posições da monarquia de Riad. Mesmo expandindo sua produção de petróleo através do xisto, ainda dependem do petróleo saudita.

 

Manter esta torneira aberta é muito importante. O Comitê de experts em Iêmen da ONU pediu que sua proposição fosse levada ao Conselho de Segurança da ONU.

 

Prudentemente, propõe que fossem investigadas as ações de ambos os lados, embora as acusações contra os Houthis sejam raras.

 

Mais uma vez se espera que os EUA se comportem como desejavam os Pais da Pátria ao formularem uma constituição fundamentalmente voltada para garantir os direitos individuais.

 

É verdade que o respeito ao pensamento de Jefferson, Washington, Tom Paine e Samuel Adams esteja atualmente fora de moda nos EUA.

 

A própria credibilidade da ONU está em risco. Afinal, ela foi criada para fazer cessar guerras, criminosas como esta, que é uma vergonha para a humanidade.

 

 

Leia também:

Arábia Saudita: o paraíso dos decapitadores

 

Luiz Eça é jornalista.

Website: Olhar o Mundo.

 

 

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