Correio da Cidadania

A volta do trabalhismo inglês para a esquerda

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A eleição de Jeremy Corbyn para líder dos trabalhistas ingleses – e futuro primeiro-ministro, no caso de partido vencer o próximo pleito – foi recebida como autêntico escândalo pela imprensa inglesa.

 

“Os sindicatos ameaçam um caos depois da vitória de Corbyn” (Daily Telegraph); “Os sindicatos amigos de Corbyn ameaçam caos com greves” (Daily Mail); “O Labour se divide profundamente depois da saída de Umunna devido às posições de Corbyn sobre a Europa” (The Guardian); “Agora Chuka Umunna junta-se ao êxodo anti-Corbyn” (The Independent);

“A divisão do Labour se alarga enquanto Corbyn toma posse” (The Times); “Corbyn: Abolir o exército!” (The Sun); “Por que o Labour de Jeremy é perigoso para a Grã-Bretanha” (Daily Express); e “Apoie Corbyn... ou saia do Labour” (Metro).

 

Não causou surpresa as críticas do primeiro-ministro conservador David Cameron à escolha do partido rival.

 

O que causou estranheza foi sua veemência, o nervosismo e as palavras assustadoras com que a qualificou, como se Corbyn fosse alguém semelhante a Hitler, Átila ou Stalin: “o Partido Trabalhista é agora uma ameaça a nossa segurança nacional, nossa segurança econômica ou à segurança da sua família”.

 

Já Tony Blair, a estrela da direita trabalhista, foi mais ameno. Tratou Corbyn como alguém tomado por suas fantasias, cuja política tipo “Alice no País das Maravilhas” levaria o partido para o abismo.

 

Na mesma linha falou o primeiro-ministro da Itália, Mateo Renzi. Ele considerou as posições de Corbyn masoquistas, “uma receita para a derrota eleitoral”. O que não deixou de ser uma surpresa, pois Renzi é o líder de um partido teoricamente de centro-esquerda, como o trabalhista inglês.

 

Ao que se sabe, somente Pablo Iglesias, líder do partido espanhol Podemos, aplaudiu o sucesso de Corbyn: “um Partido Trabalhista que volta às suas origens como um representante das classes populares é, acredito, muito importante”.

 

Tanto o Partido Trabalhista de Corbyn, quanto o Podemos, pintam agora como as maiores forças da nova esquerda na Europa.

 

Eles tomaram o lugar dos tradicionais partidos socialdemocratas, cuja mensagem vem se esgotando desde as últimas décadas do século passado.

 

Com o crescimento do neoliberalismo e o fracasso de certos regimes socialistas, os políticos europeus dessa tendência preferiram, por uma questão de sobrevivência, aceitar a grande tese do momento: a austeridade e redução de despesas públicas para garantir orçamentos equilibrados.

 

Esse processo chegou a tal ponto que, por fim, as diferenças entre partidos neoliberais e socialdemocratas acabaram ficando mínimas.

 

Culminou nas recentes crises econômicas, quando os partidos socialistas e socialdemocratas, no governo ou na oposição, perfilharam a tese da austeridade, ainda que seus efeitos caíssem principalmente sobre a classe trabalhadora, através do desemprego, empobrecimento e corte dos benefícios sociais.

 

Foi o que aconteceu no Reino Unido. O Partido Trabalhista nasceu no século 19 quando a crescente classe operária inglesa quis voar mais alto, integrando-se na política nacional. No início do século 20, já com um espectro amplo de militantes, o partido adotou no seu estatuto a bandeira do socialismo.

 

Daí em diante, ele se alternou no poder com os conservadores. Nos seus governos, foi socializada um terço da economia inglesa, criado o Sistema Nacional de Saúde Pública (ainda hoje referência mundial) e o Reino Unido adotou o conceito do Estado do Bem-Estar Social (welfare state), que objetiva assegurar boas condições de vida a toda a população, através da concessão de benefícios sociais e de políticas de proteção aos pobres.

 

Desde sua fundação, o Partido Trabalhista do Reino Unido manteve-se ligado aos sindicatos, fortemente influenciado por eles.

 

Em 1978, sob governo trabalhista, uma grande greve nos transportes rodoviários e ferroviários, na indústria automobilística, no funcionalismo público e nos hospitais prolongou-se por 1979. E causou fortes danos à economia, inúmeras paralisações nos serviços públicos, graves prejuízos à população e revolta na opinião pública.

 

Impotente, o governo perdeu seu prestígio e as eleições para o Partido Conservador. Foi a chance de Margareth Thatcher assumir o poder, liquidar a greve e lançar medidas duras para recuperar a economia abalada, bem aceitas pelo povo, ainda indignado com os sindicatos.

 

Os conservadores criaram assim uma imagem de eficiência e de força, num cenário que, com os trabalhistas sem credibilidade, manteve Thatcher e seu partido por muitos anos no poder.

Foi assim que a direita do trabalhismo ganhou embalo e o partido foi progressivamente aceitando políticas de mercado livre.

 

Esta tendência se acentuou sob a liderança de Tony Blair. Mostrando-se como um líder pragmático, procurou o que chama “modernizar o partido”. Mais exatamente aderir a posições consagradas na onda direitista que tomou conta da Europa.

 

Pegou bem junto aos ingleses. E Blair conseguiu derrotar os conservadores nas eleições de 1997. Como primeiro-ministro, ele iniciou uma nova fase no Partido Trabalhista, muito próximo do pensamento neoliberal.

 

Não foi muito longe. Em 2003, malvisto pelo povo ante sua submissão a George W. Bush e sua participação na injusta e ilegal guerra contra o Iraque, Blair teve de renunciar.

 

O sucessor, Gordon Brown, também membro do seu grupo, foi incapaz de enfrentar com sucesso a crise de 2008.

 

Com isso, acabou derrotado pelos conservadores, de David Cameron, em 2010. O novo governo privilegiou a austeridade com cortes de despesas públicas, reduções de benefícios sociais e privatizações das ferrovias e metrôs.

 

Desagradou aos mais carentes, mas conseguiu inegáveis êxitos na área da economia, que cresceu 3%, em 2014, e na diminuição do desemprego, que foi de 8%, com Gordon Brown, para 5,7%, com Cameron.

 

Eleito líder depois de Brown, Ed Miliband imprimiu uma linha moderada, entre a esquerda e a direita.

 

Não se opôs frontalmente às medidas recessivas e contrárias ao welfare state do governo conservador, limitando-se a tentar amenizar seu peso sobre as classes trabalhadoras.

 

Na questão dos imigrantes, por exemplo, sua posição foi tímida na condenação das medidas restritivas dos conservadores, próximas ao pensamento da população. Provavelmente, de olho nas eleições deste ano. Não deu certo.

 

Os ingleses preferiram ficar com a eficiência de Cameron e dos conservadores contra a falta de novos caminhos trabalhistas.

 

Com essa derrota, a maioria dos membros do partido decidiu-se por uma revolução – uma mudança total de rumos, inspirando-se na história do trabalhismo inglês.

 

A princípio mero azarão, cotado a 100-1 pelos book-makers, Jeremy Corbyn, expressão da esquerda, acabou vencendo com 59,1% dos votos, mais do que todos os outros quatro concorrentes juntos.

 

Sua eleição não foi bem vista pela maioria dos dirigentes. Apenas 20 dos 210 parlamentares o apoiavam.

 

Temiam que o partido voltasse aos tempos pré-Tony Blair, das lutas pelo socialismo, e ao domínio dos sindicatos, situações consideradas enterradas e de interesse tão somente arqueológico. Repudiadas recentemente pela população inglesa.

 

Não é o que parece estar acontecendo. A luta de Corbyn, em 30 anos de militância política, tem objetivos bem modernos.

 

Seu principal alvo é combater o tipo de austeridade financeira que busca o equilíbrio às custas dos sacrifícios das classes trabalhadoras e do Estado do Bem Estar Social.

 

Contra uma ordem internacional em que os interesses imperiais e das grandes corporações passam por cima do direito internacional e da justiça, a dano dos povos mais fracos.

 

No seu programa, Corbyn passa ao largo das velhas ideias de socialização dos meios de produção e distribuição, da luta de classes e do Estado onipotente e onipresente.

 

Ele se mostra adversário das guerras; favorável à eliminação das armas nucleares; defende que os imigrantes sejam bem recebidos e o meio ambiente protegido; é contra reduções das despesas sociais e dos salários.

 

Entre suas promessas, estão o fim da austeridade, a eliminação da crescente desigualdade e o combate à evasão de taxas, praticada pelas corporações, baseando-se em buracos nas leis.

 

Contra a recessão, ele quer que o Banco da Inglaterra invista bilhões de libras na economia para reconstruir a infraestrutura e desenvolver um grande programa de casas populares.

 

Bem, tudo isso implica em aumentos de despesas, sem ajustes fiscais. Para Corbyn, a economia inglesa tem recursos para investir o necessário sem problemas.

 

O único ponto do programa do líder trabalhista que remete às posições socialistas do passado é a renacionalização das ferrovias e metrôs e das empresas de energia.

 

Lembre-se que não faz muito tempo os teóricos do capitalismo admitiam que o Estado poderia explorar atividades econômicas essenciais desde que não fossem bem atendidas pela iniciativa privada.

 

Levando em conta tudo o que foi dito, Corbyn pode ser considerado um esquerdista moderno.

Como os líderes do Syriza, na Grécia, e do Podemos, na Espanha.

 

O Syriza encarou os poderes europeus e teve de erguer a bandeira branca. O Podemos tem chance de vencer as eleições deste ano. E mudar as coisas na Espanha.

 

Corbyn tem 5 anos para preparar seu partido para as próximas eleições inglesas de 2020.

 

Claro, a vitória não vai depender só do desempenho dele e do seu partido. Cameron também está no jogo. E já mostrou ser um rival de respeito.

 

Leia também:


“A esquerda europeia representada pelos partidos reformistas e revisionistas está acabada”

 

 

 

 

 

Luiz Eça é jornalista.


Website: Olhar o Mundo.

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