Os juristas da sereníssima República

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Léo Lince
04/10/2013

 

 

A lei (ora, a lei!) continua sendo no Brasil do século 21 o que sempre foi ao longo da nossa história: um chicote para disciplinar os “de baixo”.  Independente da perfeição formal dos seus trâmites (“dura Lex sed Lex”), o sentido real de sua aplicação reproduz a sabedoria popular plasmada no samba de Noel Rosa: “pra quem é pobre a lei é dura”.  É o que fica claro, mais uma vez, no último episódio do portentoso processo que ocupou nos últimos anos o tempo dos magistrados do Supremo Tribunal Federal.

 

Em junho de 2005, o jornal publicou a entrevista de um dos envolvidos na tramoia que desencadeou o reboliço geral. Acuado, ele resolveu denunciar os seus parceiros no ilícito. Em abril de 2006, a Procuradoria Geral da República denunciou ao Supremo os 40 envolvidos no esquema. Em agosto de 2007, o Supremo aceitou a denúncia e deu início ao processo. Em dezembro de 2012, sete anos depois da explosão do escândalo, o processo foi concluído com a condenação de 25 réus. Em setembro de 2013, após nove meses de gestação, o Supremo decidiu, por 6 votos a 5, pela abertura de um novo julgamento para alguns crimes de 12 dos condenados mais importantes. Justiça que tarda, como se sabe, é justiça falha.

 

Apesar da lerda morosidade, os cultores da letra da lei, extasiados, comemoraram a erudição amazônica da deliberação copiosamente fundamentada. O sistema de recursos pode não ser infinito, mas seus limites são por demais elásticos para quem tem dinheiro ou posição, aqueles que frequentam os segmentos mais altos da pirâmide social. Os punhos de renda da alta advocacia, pagos a peso de ouro, e a malha de cumplicidades entre os que transitam pelos ministérios do Executivo, as cúpulas do Legislativo e as instâncias supremas do Judiciário, por certo, são privilégios do patriciado. A plebe rude, que mói no áspero do cotidiano violento, nem sonha com as possibilidades protelatórias oferecidas pela retórica tribunícia e pelo formalismo da lei.

 

Sem dúvida, a reabertura do processo do mensalão, independente da sempre louvada observância ao direito de defesa, gerou uma gigantesca reversão de expectativa. Um balde de água fria nos que nutriram a esperança, acalentada por alguns capítulos do julgamento, na regeneração da Justiça. Como Pilatos no credo, o Supremo julgou como sendo alheia a sentença que também é sua. Nem tanto pela sorte imediata dos réus, já condenados no tribunal da consciência crítica da cidadania, mas pela dilatação de um padrão de política e de uma tradição procedimental que não faz jus ao que deveria ser o espírito das leis.  Como no caso das novelas de televisão, a segunda edição do processo não terá a mesma audiência. A novidade esperada não veio e o marco que espreita na linha do horizonte é o da repetição do que sempre sustentou a vitória da impunidade.

 

Vale lembrar Machado de Assis, segundo o qual “o comentário da lei é a eterna malícia”.  No belíssimo conto “A sereníssima República”, escrito no último quartel do século 19, o nosso grande escritor trata da questão que agora se recoloca. Elabora, com fina ironia, a fala de um “grande filólogo, bom metafísico e não vultar matemático” que decide a controvérsia estabelecida na escolha de um “coletor de espórtulas” de uma república de aranhas. A eleição consistia na retirada de bolas contidas em um saco, nas quais estavam escritos os nomes dos candidatos. Dois nomes na disputa, Caneca e Nebraska, e a bola retirada trazia o nome do último, porém com um pequeno defeito. Com a mesma erudição amazônica e tão copiosamente fundamentado quanto o voto de Minerva que decidiu pelos embargos infringentes no caso atual, o personagem machadiano definiu jurisprudência. Embora longa, vale a transcrição:

-- “Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita a ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele escrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede; há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica, e a forma sônica, k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro esta primeira silaba: ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebraska  - Cane . Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. E, todavia, não a demonstrarei, visto faltar-vos o preparo necessário ao entendimento da  significação espiritual ou filosófica da sílaba, suas origens e efeitos, fases, modificações, consequências lógicas e sintáxicas, dedutivas ou indutivas, simbólicas e outras. Mas, suposta a demonstração, aí fica a última prova, evidente, clara, da minha afirmação primeira pela anexação da sílaba ca às duas cane, dando este nome Caneca”.

 

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Léo Lince é sociólogo.

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