O erro fatal dos pobres do Pinheirinho

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Léo Lince
31/01/2012


Para garantir o êxito pleno da iniciativa, não faltaram recursos. Foram mobilizados dois helicópteros, duzentas e vinte viaturas, quarenta cães, cem cavalos, alguns carros blindados para abrir caminho em meio ao caos, e mais de dois mil policiais militares fortemente armados, além de guardas municipais, bombeiros e policiais civis. Uma verdadeira operação de guerra.

 

Antes da investida brutal, deu nos jornais, a polícia paulista infiltrou agentes para minar a resistência do inimigo, isolar a liderança e definir os pontos fracos e o momento certo para o ataque. Tudo meticulosamente preparado, conduzido com empenho e método pelo governador em pessoa, para fazer valer a “dura Lex”, como Noel Rosa no “breque” imortal: “prá quem é pobre, a lei é dura”.

 

O acontecido no Pinheirinho, como bem denunciou o jornalista Jânio de Freitas, não foi uma simples “reintegração de posse”. Assim como a toga pode esconder bandido (palavra de corregedora), a medida judicial pode abrigar impulsos que vão muito além do que está nela escrito. A “blitzkrieg” do governador Alckmin, esse é o nome certo para a operação, foi montada para produzir rendimentos políticos. Não por acaso, a medida recebeu elogios rasgados em editorial de “O Globo”, segundo o qual esta seria a “fórmula”, por excelência, para garantir a propriedade privada e o estado de direito.

 

A comunidade do Pinheirinho, com seis mil habitantes, existia há quase uma década e se formou aos poucos, pela ocupação de um enorme terreno baldio.  Propriedade encalacrada, empreendimento falido e abandonado por um especulador mais sujo que pau de galinheiro.  Como o Estado não garante ao desvalido o direito de moradia, os pobres ocupam áreas assim para ter onde morar, procedimento comum na formação da urbe brasileira.

 

Até ser dizimado pela polícia, era um bairro pobre, com ruas e quadras definidas, oito igrejas, uma praça, casas de alvenaria, morada de gente humilde. Faz lembrar Chico e Vinícius, “vindo de trem de algum lugar”.  Era o lar para muitos que hoje perambulam de déu em déu. O choque brutal da ordem injusta destruiu da noite para o dia o que foi construído com enorme sacrifício. E espancou a esperança teimosa dos que insistiam em construir, ali mesmo, uma vida melhor.

 

É bom lembrar que estava em curso um processo de negociação, com a presença de líderes da comunidade e de representantes da massa falida que reivindica o terreno, e legitimado pela presença de parlamentares e representantes dos três níveis de governo. Havia também uma contenda judicial, com guerra de liminares e posicionamentos conflitantes entre as esferas estadual e federal do poder judiciário. Uma luta por direitos e justiça social. Faz lembrar Oswald de Andrade, o grande expoente do nosso modernismo, que sempre invocava em defesa dos posseiros uma lei que, segundo ele, nenhum governante poderá revogar: a lei da gravidade.

 

Na madrugada de domingo, dia 22 de janeiro, dormiam tranqüilos os moradores do Pinheirinho. Quatro dias antes, uma decisão judicial suspendera o despejo por 15 dias. A decisão foi comemorada com festa pelos moradores, que acreditavam e apostavam no avanço da solução negociada.  Foram acordados sob pata de cavalos pela “blitzkrieg” do governador Alckmin.  Os de cima, ensandecidos pela exuberância irracional dos negócios em alta, não puderam esperar. Como em Canudos, nos sertões de Euclides da Cunha, a força bruta que avassala foi chamada para cortar o nó górdio: mais uma “Tróia de Taipa” foi derrubada.

 

Especula-se sobre o que motivou a opção preferencial pela solução de força. É verdade, claro, que os credores pressionavam por rapidez. Querem o terreno, avaliado em mais de 180 milhões e que, “limpo” dos pobres, pode decuplicar seu preço. O mercado dos negócios imobiliários fervilha no Brasil inteiro.  As eleições se aproximam e serão, mantidas as tendências em curso, as mais caras da nossa história política. Vai ganhar a prefeitura quem “arrecadar” mais dinheiro: os partidos da ordem sabem que o poder, agora, emana dos financiadores de campanha.

 

Para além de todos os interesses particularistas que alimentaram o desatino praticado pela “blitzkrieg” do governador de São Paulo, existe uma argamassa ideológica na sustentação do procedimento. É ela que explica a convergência entre a direita togada e a direita montada nos aparelhos de repressão, o reacionarismo que domina a mídia associada aos mega-negócios e, claro, os donos de tais negócios. Tudo indica, pelos esgares característicos adotados do governador ao se pronunciar sobre o acontecimento, que os pobres da comunidade Pinheirinho cometeram um erro fatal.

 

Todos sabem que a ordem social no Brasil é injusta, violenta e desigual. Não há como negar a contundência de tal fato secular. No entanto, observa-se a recorrência entre nós de um claro paradoxo. Sempre que qualquer segmento social procura se organizar, política e democraticamente, para lutar por direitos novos ou antigos, por mudanças na estrutura de tal ordem injusta, pode estar certo, ele será visto como um perigoso estorvo e vai tomar porrada.

 

Não se admite que, ali onde imperam as condições mais difíceis, os pobres produzam prodígios na luta pela sobrevivência. A organização solidária, onde a dignidade dos despossuídos se restaura na luta política coletiva, é uma afronta aos valores da ordem dominante. Segmentos populares mobilizados, protagonistas ativos da política, lutando por mudanças, são exemplos perigosos. Não pode. Imaginem se a moda pega!

 

Essa, sem dúvida, é razão pela qual o Estado foi chamado a agir, e atendeu prontamente na sua condição de guardião da ordem injusta. A truculência praticada pelo poder público contra os pobres do Pinheirinho é a prova provada da inexistência entre nós de justiça e cidadania. Faz lembrar Adoniran Barbosa, que plasmou no cancioneiro popular uma constante da tragédia social brasileira: o progresso das elites é o vale de lágrimas dos pobres.  Milhares de outros brasileiros se juntarão a ele, “Mato Grosso e o Joca”, no lamento estóico pela perda da sua “Saudosa Maloca”.

 

Léo Lince é sociólogo.

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