Correio da Cidadania

O florescimento do “lulismo”

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O ano de 2010 ficará marcado na história da política brasileira como ponto culminante no florescimento do "lulismo". Um fenômeno de singular complexidade e múltiplas dimensões. Algumas ostensivas, outras nem tanto. A feição visível resplandece, mas as raízes que se nutrem no caldo grosso da geléia geral brasileira conservam a condição de enigma não decifrado.

 

Na disputa eleitoral, o presidente Lula nadou de braçada. Contrariando as recomendações de praxe, bancou a antecipação do debate sucessório. Transformou em palanque permanente a segunda metade de seu último mandato, usou de forma escancarada a máquina de governo e não se deixou intimidar pelas brandas admoestações vindas da sereníssima justiça eleitoral. Armou, fez o que quis, e se deu bem. Foi, sem ser candidato, a figura central do processo inteiro.

 

Os três postulantes tratados como os únicos viáveis pela mídia que monopoliza a informação, cada qual a sua maneira, eram todos "lulistas". Ou se apresentaram como tal. A candidata oficial, por suposto. O tucano, para surpresa de alguns, chegou a exibir o presidente em sua propaganda eleitoral. E a candidata apresentada como terceira via preferiu compor o terceto da mesma via ao propor uma seleta dos melhores momentos de Lula e FHC. Nenhum deles questionava o modelo dominante, queriam apenas melhor gerenciá-lo. Variações sobre o mesmo tema, mais e melhor do mesmo.

 

Como defensores da ordem dominante, aceitaram de bom grado a influência decisiva do poder econômico nas eleições mais caras da história republicana. Bem como a primazia dos marqueteiros na definição da retórica de confronto. Um antagonismo cenográfico que atiçou a fogueira dos preconceitos e do irracionalismo político. Não por acaso, os candidatos que mais gastaram dinheiro foram também os protagonistas das maiores baixarias. A reprodução ampliada da mesmice formou a atmosfera adequada para o cortejo triunfal do pragmatismo lulista.

 

Para além do momento eleitoral, o "lulismo" também pontificou nos subterrâneos dos negócios. Delfim Netto, o tzar da economia no período do autoritarismo militar, foi categórico na avaliação: "o Lula salvou o capitalismo brasileiro". Adotou, desde o alvorecer do seu primeiro governo, o ideário do grande capital na macroeconomia. O banqueiro Meirelles atravessou todo o período no timão das finanças. E quando eclodiu a crise geral que ainda nos envolve, procedeu como recomenda o protocolo de salvação dos interesses dos magnatas supremos.

 

O mesmo Meirelles agiu rápido e não poupou verbas nem verbo. Soltou grana grossa para os de sempre, mas declarou que algumas das nossas mega-corporações, atoladas até o pescoço em derivativos tóxicos, estavam falidas. E, pior, arrastariam consigo os nossos maiores bancos, cuja alardeada solidez não resistiria ao roldão da crise. Os bilhões do compulsório, o cofre forte do BNDES, entre outros fundos públicos, foram acionados na operação de salvamento.

 

O que se viu em seguida, e que ainda se vê, em termos de fusões, incorporações, na área dos serviços, no agronegócio, na exportação, no capital financeiro, são momentos do processo de concentração do capital e monopolização do poder econômico. Os anéis burocráticos que articulam o cerne do poder político com os pontos fortes do poder econômico estão presentes em cada um destes grandes negócios. O capitalismo brasileiro ganha uma morfologia nova sob a égide do "lulismo", daí o categórico entusiasmo do Delfim Netto.

 

O Lula é o Lula, sua trajetória e circunstância, mas o "lulismo" vai além da figura física sobre a qual está montado. O ex-pobre e retirante que se fez líder sindical e popular nos tempos da resistência contra a ditadura foi colocado no vértice de processos coletivos que produziram abalos profundos nas relações de forças de nossa sociedade.

 

Sindicalismo classista, partido de esquerda dotado de forte mística radical, movimentos sociais com rasgos de autonomia e aspiração de protagonismo. Virtualidades que se perderam no processo, mas que propiciaram um giro novo no processo de circulação das elites.

 

Quixote na oposição e Sancho Pança no governo, o "lulismo" disputou e polarizou todas as eleições presidenciais depois da ditadura, ganhou as duas últimas e acaba de eleger como sucessora uma virgem em disputas eleitorais. Para o aplauso geral do coral dos contentes, salvou o capitalismo brasileiro. E o seu líder consegue ostentar ao fim do segundo mandato uma espantosa popularidade. Sem dúvida, são elementos que definem o florescimento do "lulismo".

 

PS: Vale lembrar, para posterior aferição, que, na botânica, de onde o conceito é originário, o florescimento é definido como o ponto a partir do qual toda a evolução posterior adquire a forma inevitável da decadência.

 

Léo Lince é sociólogo.

 

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