Guinada cenográfica

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Léo Lince
25/02/2010

 

Nos tempos do saudoso Carlito Maia, quando era "pequeno e insolente", o Partido dos Trabalhadores fazia congressos bem mais animados. Mais criativos e sintonizados com o dinamismo que lhe chegava dos conflitos sociais. Agora, "grandalhão e indolente", o partido aderiu ao figurino "prêt-à-porter" da ordem dominante. Marqueteiro americanizado, brilho de aluguel, confete arremessado na boca dos canhões de luz. Um espetáculo.

 

A matriz do debate e resoluções congressuais, antes ancorada nas demandas da cidadania, emana agora da "estadania", aquele espaço onde o continuísmo conservador elabora os seus múltiplos disfarces. Máquina eleitoral acoitada na máquina do Estado, o PT não "tomou o poder", foi tomado por ele. Embarcou no bonde da ordem dominante, sentou na janelinha e opera como ferramenta a serviço dos novos barões assinalados.

 

No entanto, é curioso notar que, apesar de já bem consolidado esse "passamento", o petismo ainda conserva o dom de iludir alguns e de assustar os setores mais desavisados da velha direita. Há, por um lado, os que ainda se emocionam diante dos confetes: pedacinhos coloridos de saudade dos bons tempos. Por outro lado, o jogo de cena – simulacro do eterno e insuperável antagonismo entre a esquerda e a direita - cumpre função importante na polarização cenográfica entre os que disputam a gestão do mesmo modelo.

 

Afinal, estamos em ano de eleição geral e há uma disputa presidencial na linha do horizonte. Em função de tal fato, foi facultado transformar o primeiro dia do congresso em palco de perdidas ilusões. Foi um Deus nos acuda. Os jornais abriram manchetes garrafais: "guinada à esquerda". Defesa dos direitos humanos e de seu arquivado Plano Nacional, taxação das grandes fortunas, redução da jornada de trabalho, avanço na reforma agrária, controle democrático sobre o monopólio dos meios de comunicação de massas, tudo isso foi aprovado no contexto de um estranho e silencioso consenso. Não houve, na tribuna do inexistente debate, uma única ou escassa voz a questionar tais pontos. Uma beleza.

 

Antes de entoar alvíssaras, a cautela recomenda prestar atenção no entorno histórico e conjuntural do evento. Ricardo Berzoini, o presidente que saía, e José Eduardo Dutra, presidente entrante, portanto figuras postadas no vértice partidário, cuidaram de explicar aos patrocinadores, em tempo real, o sentido da "guinada". Os dois disseram mais ou menos a mesma coisa: são apenas diretrizes, algo mais genérico possível, serão submetidas à candidata, aos aliados, aos setores da sociedade, sindicatos, empresários. Ou seja, não vale o escrito: é vento.

 

No encontro petista que antecedeu a última eleição geral também foi aprovada uma resolução, tão positiva quanto as atuais, que exigia a anulação do vergonhoso leilão da Vale. O governo, afinado ao modelo dominante, era contra e a maioria do partido, acoitada na máquina de governo, não moveu uma palha. Como no caso da propaganda contra as privatizações no segundo turno da mesma eleição presidencial, são palavras ao vento, papel sem lastro.

 

Os dirigentes de turno da máquina petista podiam até se poupar. Não carecia o vexame da explicação. Os magnatas supremos do grande capital estão tranqüilos. Tratam direto com a chefia geral. Passeiam rindo suas bocas vorazes pelos balcões do Banco Central, do BNDES, fundos de pensão, onde se acertam sobre o mais espantoso processo de concentração de poder da história brasileira. As incorporações, apropriações e mega-fusões, tudo escorado nas arcas do tesouro, são a nova face da privatização, o novo surto do velho choque de capitalismo.

 

Aliás, o presidente Lula cuidou de encomendar, nas vésperas do congresso petista, entrevista exclusiva ao "Estadão". Entre os destaques, dois recados. Aquele que define o congresso petista como "uma feira de produtos ideológicos", compra quem quer. E, no estilo Laudo Natel, respondeu que o único Estado forte que ele admite é o "Estadão", referindo-se ao jornal que é o símbolo mais vetusto do conservadorismo brasileiro.

 

Quem predica uma agenda de mudanças que não praticou em sete anos de governo faz por merecer a desconfiança geral. As resoluções aprovadas, todas positivas, podem até freqüentar a retórica dos palanques de campanha, mas carregam a insustentável leveza da mentira cenográfica.

 

Léo Lince é sociólogo.

 

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