Dilemas humanos perante a crise econômica: perspectivas

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Guilherme C. Delgado
14/02/2012

 

Pensar que a vida humana em sociedade depende de maneira crescente do funcionamento do sistema econômico é uma idéia que chega a provocar medo, especialmente em momentos de crise funcional ou estrutural da própria economia. Como essas situações críticas ocorrem cada vez mais freqüentemente e de maneira profunda, provavelmente temos problemas de fundamentos não devidamente enfrentados.

 

Veja-se no receituário aviado esta semana pela União Européia para os novos ‘ajustes’ impostos a Grécia: corte de valores do salário mínimo, das aposentadorias e pensões e demissão expressiva de funcionários públicos, para uma economia que já carrega o mais alto nível de desemprego da Europa, depois de quatro anos de decréscimo da atividade econômica. Tudo isso é imposto, sob pena de exclusão da zona do euro, pela União Européia e, indiretamente, pela própria economia mundial na sua conformação atual.

 

Implícita a essa punição aos gregos, há uma curiosa captura teológica da tese do sacrifício purgatório, mas de maneira completamente invertida do seu significado cristão. A cruz na qual o povo grego está sendo pregado é a mesma que os romanos utilizaram para desmoralizar publicamente os rebeldes do império – exemplo de crueldade exemplar para punir com morte dolorosa os ‘criminosos’, segundo a visão de Roma. Esse sacrifício impõe escravização e morte e nada tem a ver com a experiência de liberdade, Ressurreição e plenitude da vida que é a resposta de Jesus Cristo à cruz romana.

 

O exemplo da Grécia é apenas um caso particular de uma situação mais geral, que em pleno século XXI assume uma densidade nunca dantes verificada na história do capitalismo dos últimos 250 anos. Uma proporção grande demais dos 7 bilhões de seres humanos em todo o mundo depende do funcionamento da economia mercantil para produzir e reproduzir condições essenciais à vida humana em sociedade. Moradias, alimentos, vestuário, água potável, terras, saúde e educação, convertidos em bens mercantis. Dependem de empregos, que em última instância provêem dinheiro – meio de troca para suprir necessidades. Observe-se que no século 21 a dependência da reprodução da vida humana em relação ao funcionamento da economia capitalista é infinitamente maior do que fora nos anos 30 do século passado.

 

Necessidades humanas básicas quando convertidas em mercadorias de consumo de massa impõem à economia política exigências éticas que são completamente estranhas ao utilitarismo social, fundamento ético da economia capitalista desde Adam Smith até os nossos dias. E não basta, como propunha Keynes na sua obra clássica, uma agenda de justiça social para além da sua ‘Teoria Geral’. Hoje há que se pensar a “idéia da justiça” e da liberdade no cerne do desenvolvimento humano, a exemplo do economista indiano Amartya Sen, sob pena de reproduzirmos uma contradição insanável no processo de crescimento material da economia relativamente às condições de cidadania da maioria da população.

 

Por outro lado, a dinâmica real de crescimento do capital financeiro em escala global e sua absoluta hegemonia nos planos econômico e político nos Estados centrais do sistema mundial obstam a concretização de limites políticos à completa liberalidade de acumulação e circulação desse capital. Em tais condições, crises sucessivas de caráter estritamente financeiro, como foi o caso das hipotecas imobiliárias nos EUA em 2008 e atualmente a crise de endividamento dos países menos desenvolvidos da zona do euro, convertem-se rapidamente em problemas de desemprego em massa, com alto potencial de contaminação para a economia mundial. Em face desse risco iminente, a solução das crises financeiras tem sido pela via da ‘socialização das perdas’, sem afetar e responsabilizar seriamente os promotores do super-endividamento das famílias.

 

Os remédios contra o desemprego, a instabilidade e a desigualdade econômica que emergiram nos anos 30 e 40 do século passado, de inspiração keynesiana – planejamento governamental do investimento, “Estado do bem Estar”, estrito controle das operações monetário-financeiras pelos Bancos Centrais - continuam válidos para economias nacionais, mas impotentes no plano global. Mesmo nas economias nacionais, estão sob intenso ataque dos arautos do capital e do dinheiro plenamente liberados.

 

Do exposto parece-nos evidenciada a necessidade de reconstrução das próprias bases da economia política contemporânea, no contexto da qual a política social adquiriria centralidade, no sentido da garantia das condições de reprodução da vida humana em sociedade. Isto certamente só é possível sob a égide de um sistema econômico protegido da instabilidade intrínseca da acumulação financeira. Tais assertivas soam evidentemente utópicas quando confrontadas com os poderes globais ora constituídos. O problema maior é que tais poderes em crises sucessivas de dominação não sinalizam bons presságios para a humanidade.

 

Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

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