Correio da Cidadania

Arte e meditação

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Participei, em fins do ano passado, de três encontros com grupos de oração em torno do tema arte e meditação.

 

Toda obra de arte é sacramento, sinal sensível do que não se vê e, no entanto, ela expressa. Dela emanam sinais polissêmicos. Ela “fala” a cada observador. E este estabelece com ela uma relação sujeito-sujeito, dialógica, interativa.

 

A arte desperta-nos a intuição e a emoção. Nos re-liga com algo que, até então, escapava à razão. Daí sua relação com a religião. Ela emite sinais que não são controlados nem pelo artista nem pelo apreciador.

 

A arte, como a meditação, nos induz ao mergulho no próprio eu, lá onde o ego se desfaz qual botão de rosa a se abrir em flor, e nos aproxima da ideia de beleza e harmonia. Enleva-nos, faz-nos apalpar o Mistério, balbuciar o impronunciável.

 

Ao contemplar ou desfrutar da obra de arte – pintura, balé, música – ela se metaboliza em nossa sensibilidade. Ao meditar, refluímos os cinco sentidos no núcleo axial que nos remete ao verdadeiro eu e que, na verdade, é um outro que funda nossa verdadeira identidade.

 

O que é, hoje, obra de arte? Há uma dessacralização da arte. O início desse processo talvez possa ser demarcado pela obra “A fonte”, de Marcel Duchamp, criada em 1917, e representativa do dadaísmo. Trata-se de um urinol de porcelana, idêntico a milhares encontrados em mictórios públicos. Exposto em Paris, está avaliado em 3 milhões de euros.

 

Hoje em dia o valor da obra de arte, sua aceitação pelo público, tem muito a ver com a performance do artista. Vide os cantores pop. E é o mercado, apoiado na mídia, que determina o que tem ou não valor.

 

Muitos artistas morreram sem serem reconhecidos, como Van Gogh, que em vida jamais vendeu uma tela. Presenteou seu médico com o quadro “Rapaz de quepe”, que o doutor aproveitou para tapar um buraco no galinheiro de sua casa... Há pouco esta tela foi vendida por US$ 15 milhões!

 

Todo artista se julga digno de valor e reconhecimento. Isso, entretanto, depende dos críticos, da mídia, da reação do público. São raros aqueles que, mesmo sem cair no gosto do mercado, permanecem fiéis a seu talento criativo.

 

O que pode ser admirado hoje, pode ser desprezado amanhã. É o caso de um dos autorretratos de Rembrant. A cada vez que deixava a Holanda, a tela era assegurada em US$ 4 milhões. Uma comissão de peritos e críticos, que analisou todos os quadros atribuídos ao genial pintor holandês, concluiu que um dos autorretratos, embora assinado com o nome dele, não pode ser atribuído a ele. A obra caiu no ostracismo...

 

O nosso olho, a nossa sensibilidade para a obra de arte, são condicionados pela opinião pública. Esta tende a ser elitista. Considera arte o que atrai o público pagante; e folclore o que atrai pessoas desprovidas de recursos.

 

Não me agrada a adjetivação “arte popular”. Nessa categoria costumam entrar as obras de todos que não possuem suficiente erudição artística nem frequentam as rodas que se fecham em galerias sofisticadas ou palcos refinados.

 

A meditação, como a arte, exige cuidado, ascese, empenho, confiança na própria capacidade criativa. Tanto a arte como a meditação nos conectam com o Transcendente, nos fazem emergir da esfera da necessidade para a da gratuidade, dilatam em nós potencialidades que nos fazem “renascer”.

 

Não é sem razão que as religiões, sobretudo em suas liturgias, tanto recorrem à arte e têm sido, ao longo dos séculos, escolas de artistas. Quantos cantores e músicos estadunidenses não iniciaram sua arte em igrejas evangélicas!

 

Infelizmente o mercado nos impõe, pela mídia espetaculosa, o mero entretenimento como se fosse obra de arte. Nisso se parecem às liturgias que exacerbam nossa emoção sem nada acrescentar à nossa razão e, muito menos, ao caráter ético de nossa ação. Vide as showmissas.

 

A arte não há de ser de esquerda ou de direita, moralista ou inescrupulosa. Há de ser bela. Consta que eram nuas todas as esculturas e figuras pintadas por Michelangelo no Vaticano. Até que um papa escrupuloso pediu a Daniele Volterra, discípulo do genial artista, para cobrir com uma pincelada os órgãos genitais... censura removida recentemente por peritos japoneses. Volterra ganhou o apelido de “Il Braguetone”, O Braguilha...

 

Todo artista é clone de Deus. Extrai de sete notas musicais, dos movimentos do corpo, do desenho, do barro, do modo de narrar uma história, o que há de belo no humano e na natureza. Recria ao criar. E sempre o faz partir de um estado de concentração comparável à meditação.

 


Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística da natureza” (José Olympio), entre outros livros.

Website: http://www.freibetto.org/

Twitter: @freibetto

 

Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.)

Comentários   

0 #1 Walmor Chagasjosé 19-01-2013 04:12
Uma análise anarquista surgirá dos debates entre Descarte e Pascal.
Mas tem um site www.insite.pro.br
Que tem um texto ( Ciência e jornalismo: da herança positivista ao diálogo dos afetos (MEDINA, Cremilda. São Paulo: Summus, 2008, 116p.) que problematiza a questão do jornalismo. O jornalismo tem razão que a própria razão desconhece, afirmação de José marques vieira filho. Espero que a questão Descarte X Pascal não se resuma a uma briga de botequim entre razão X Anarquismo.
Tem outro hiperlink:http://pt.wikipedia. org/wiki/Marin_Mersenne
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