Correio da Cidadania

Crise discursiva do PT: entre tabus e autoproclamação

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O mais recente programa televisivo do PT, veiculado no dia 6 de agosto, confirma que diante da “crise econômica” e da “crise política”, deflagrou-se no partido uma acelerada e profunda “crise discursiva”. Como era de se esperar, a imagem de Lula foi largamente explorada como última boia de salvação. Entretanto, sem poder preservar-se do clima de desencanto, Lula também aparece sem novidades. Grosso modo, a crise econômica “faz parte”, o ajuste “eu também fiz”, a crise política é “intriga da oposição”. Ao invés de reinventar-se com transparência e combate, o discurso petista se tornou uma versão muito piorada de si mesmo, cada vez mais defensivo e inofensivo. Enquanto na esfera econômica lança mão daquele manjado festival de autoproclamações, na esfera política, acumulam-se os tabus, que só oxigenam o conservadorismo.

 

A habilidosa construção da propaganda lulista na primeira década de governo PT/PMDB conseguiu emplacar uma marca de sucesso, discursivamente alicerçada na ideia de que pela primeira vez na história do país alguns problemas estavam sendo resolvidos. Há que se reconhecer que, apesar de autoproclamatório, o bordão “nunca antes na história desse país” não era uma pura fantasia das elites petistas, transformadas por seus marqueteiros bilionários em incríveis peças cinematográficas.

 

Pensar isso seria simplesmente subestimar a população brasileira, que reforçou sua preferência por três eleições seguidas (2006, 2010, 2014). Tal bordão, linha essencial do discurso petista, possuía algum lastro na realidade, sintonizando-se com uma percepção difusa de melhora das condições gerais de vida da população, especialmente os mais pobres. O fato é que as classes trabalhadoras brasileiras, desde 1964 até 2004, foram governadas por forças políticas profundamente antipopulares.

 

Desde Jango não se sentia os efeitos do aumento real de poder de compra dos mais pobres. Mesmo que as políticas sociais do neoliberalismo petista tenham sido superficiais e não tenham alterado a estrutura da segregação social no Brasil, seus impactos foram percebidos pela subjetividade popular como um gigantesco salto adiante, uma mudança extremamente concreta, tecendo um vigoroso laço de confiança que ligou o discurso petista às massas. Agora, diante dos olhos destes milhões de trabalhadores, o lulismo está virando fumaça.

 

Conforme a crise econômica chegou, a distância entre a dura realidade do capitalismo periférico brasileiro e a fantasiosa percepção sobre o suposto controle que o lulismo teria de sua própria estratégia só cresceu. É possível dizer que a propaganda lulista foi de uma enorme desonestidade intelectual do PT. Como insistiu André Singer, o lulismo foi uma combinação entre virtú e fortuna.

 

A janela de oportunidades não foi aberta pelo PT, mas, sim, aproveitada pelo partido. Por meio dela, o neoliberalismo foi declinado a social-liberalismo, mas as condições históricas que o permitiram não estavam e nunca estiveram sob controle. A desonestidade intelectual petista foi alçar a si próprio ao papel de messias, protetor dos pobres e dos oprimidos, produzindo uma fantasia farsesca de que o capitalismo brasileiro alcançava a autodeterminação pelas mãos mágicas de um metalúrgico (às vezes pergunto-me se a cúpula petista realmente acredita nisso).

 

Enquanto isso, aprofundava-se o caráter primário-exportador da nossa economia, cegada pela inflação de commodities, modernizava-se nossa posição neocolonial no sistema econômico mundial e perpetuava-se religiosamente o pagamento dos abusivos juros da dívida pública, esta a verdadeira espinha dorsal da corrupção que assalta nosso Estado. Tudo era comemorado com ufanismo, inclusive a queda dos juros, o que durou menos de um ano e meio. O chamado ensaio desenvolvimentista de Dilma evaporou ao menor sinal de “greve dos investidores”. Houve quem acreditasse que a burguesia industrial brasileira poderia ser menos rentista...

 

Enfim, em um arranjo institucional que só poderia existir no quadro de um crescimento econômico excepcional, alavancado de fora para dentro pelo efeito-China, o PT rendeu-se às exigências do peemedebismo, que também se beneficiou da liderança extraordinariamente carismática para coordenar suas chantagens nos bastidores.

 

Agora o arranjo da governabilidade ruiu, junto com o crescimento econômico. Contudo, o PT não notou que seu discurso, tanto quanto sua estratégia, tornou-se obsoleto. Prossegue sua ladainha de autoproclamações e recrudescem-se os tabus. No programa de TV, nenhuma palavra sobre reforma política ou Operação Lava Jato, o oxigênio da crise política. Nenhuma palavra, como sempre, sobre o monopólio das comunicações, veículos panfletários da crise política. Nenhuma palavra sobre a redução da maioridade penal na “pátria educadora”, resultado direto da crise política. Nada sobre o PL das terceirizações, principal retrocesso no horizonte da classe trabalhadora brasileira. Nenhuma palavra sobre as “mais mudanças” que marcaram as peças de marketing do estelionato eleitoral vivido em 2014.

 

Obviamente, enfim, nenhuma palavra sobre os “investimentos” do dinheiro dos cidadãos brasileiros nos juros da dívida pública, que alcançaram mais do que a soma de todos os investimentos em programas sociais, educação e saúde públicas - números estes que fazem parte do arsenal de autoproclamação.

 

O lastro real da autoproclamação petista se corrói a uma velocidade impensável. Ao mesmo tempo, a multiplicação dos tabus cria as condições de um trágico suicídio político. Ao obstruir o debate sobre os verdadeiros problemas do país e os poderosos interesses que deveriam ser enfrentados para resolvê-los, o PT joga água no moinho do conservadorismo, que está destinado a derrotá-lo. Quanto mais demonstra subserviência diante das exigências da governabilidade peemedebista, quanto mais alardeia que o ajuste neoliberal é a única e inevitável saída, mais insufla e fortalece seus supostos inimigos. A crise discursiva do PT é reflexo de que a fantasia lulista só não se desfez para o petismo.

 

Tal crise discursiva só poderia ser superada com uma verdadeira mudança de estratégia. Mas a cúpula do partido está narcisicamente obcecada pelo retrovisor. Ainda enxerga como obra sua algo que só foi possível devido a um extraordinário golpe de sorte da conjuntura. Acredita com tanto afinco na estratégia lulista que não consegue admitir seu esgotamento, destinando-se a tornar-se uma imitação piorada e fracassada de si mesmo.

 

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Joana Salém Vasconcelos

Historiadora e mestre em Desenvolvimento Econômico

Joana Salém Vasconcelos
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