É Natal?

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Frei Betto
26/12/2009

 

É Natal. Tudo se contradiz à nossa volta. É verão nos trópicos e, no entanto, há neves de algodão, trenós e o Papai Noel agasalhado do frio. À mesa, castanhas e nozes, alimentos adequados ao inverno.

 

Tudo se mistura em nós, confunde sentimentos, atropela referências. Damos presentes aquém de nosso afeto e, alguns, além de nossas posses. O sangue que enlaça a família parece mais forte que o amor.

 

Em plena festa religiosa, move-nos um consumismo compulsório e compulsivo. Os bens finitos superam os infinitos. A felicidade parece revestida de papel celofane. O significado cristão esconde-se em acenos nostálgicos, demasiadamente frágeis para que Jesus logre quebrar a hegemonia mercantil de Papai Noel.

 

Como pesa esta data para quem não a celebra liturgicamente! A um canto, a árvore com adereços coloridos e, à sombra, o presépio com o Menino na manjedoura. Mero artesanato. Ali dorme também o menino que fomos um dia, inebriado pela fé; agora, de olhos fechados, teme abraçar o apelo divino e comemorar o aniversário de Jesus.

 

Sim, há abraços e beijos, presentes que se trocam entre taças de vinho e copos de cerveja. A alegria, como olhos de mulher, é marcada por um risco de sombra: ninguém blefa no mais íntimo de si mesmo; lá onde reside, sufocado, o nosso verdadeiro eu, aquele que sonhamos libertar um dia. Sabemos que as crianças estão felizes com o novo tênis, os jogos eletrônicos, as bonecas que choram sem emoção e falam sem inteligência.

 

Quem é Jesus para essa geração que não freqüenta catecismo e cujos pais têm pudor de rezar com os filhos e dar-lhes as mãos nas veredas que conduzem ao Transcendente? Onde se esconde o Menino da manjedoura ocultado pela obesidade comercial do velhinho que ignora as crianças pobres?

 

Na falta de mística, muitos procuram o êxtase em doses químicas. Sem disso terem consciência, gostariam que, atrás da seringa, por dentro da drágea ingerida, entre a fumaça ou o pó que se aspira, Deus irrompesse. Todos os presentes são insuficientes para o coração que clama por Presença.

 

Neste Natal, alguns vão ao culto e oram em família. Outros preferem a solidão de um mosteiro, a missa cantada em gregoriano, a leitura da Bíblia, a mesa onde se partilha menos comilanças e mais gestos de carinho.

 

Porém, o que fazer? A TV universaliza a publicidade, a publicidade impregna a mercadoria de fetiche, o fetiche traz a ilusão de que os presentes, uma vez desembrulhados, irradiam felicidade. Assim, deixamos nos escravizar pelas convenções, sem ao menos indagar o que significam e se nos convêm.

 

Dentro de poucos dias, voltaremos ao ritual que se repete a cada ano: recarregar a despensa e a geladeira para o réveillon e, de novo, os mesmos abraços e afagos, com a vantagem de não dar presentes. Apenas desejar boa sorte e feliz ano-novo.

 

Talvez, no íntimo, o propósito de que "daqui pra frente tudo vai ser diferente." Beber menos, balancear a alimentação, fazer exercícios físicos, deixar o cigarro, dar mais tempo à família. Ou, quem sabe, dar um passo além do próprio umbigo: uma causa solidária, uma instituição de caridade, um projeto que minore a dor dos excluídos. Preocupar-se menos consigo e ocupar-se mais com os outros. Propósitos de renascer. Para que outros tenham vida.

 

Então, sim, será Natal. Nascimento. Como Jesus propôs a Nicodemos, sem que seja preciso retornar ao ventre materno. Deixar que o Espírito dispa-nos do homem e da mulher velhos para nos revestir do novo ser, aquele que tem seu protótipo e paradigma no Menino que dorme no presépio e, agora, desperta dentro de nós, faminto de Deus, de justiça, de uma sociedade menos desigual e um mundo melhor.

 

O Natal deveria durar o ano todo, no mais profundo de nosso coração, o verdadeiro presépio.

 

Frei Betto é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

 

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