Aborto: por uma legislação em defesa da vida
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- Frei Betto
- 22/05/2007
O terapeuta se depara com o drama de mulheres que abortaram.
Como religioso, solicitam-me aquelas que, diante de gravidez indesejada, sofrem
a angústia da dúvida. Raramente vêm acompanhadas por seus parceiros - o que é
preocupante sintoma.
Em pleno século XXI questões sérias como o aborto são, ainda, consideradas
tabus. Lamento as dificuldades que a Igreja Católica impõe à discussão. Se a
teologia é o esforço de apreensão racional das verdades de fé, o teólogo tem o
dever de manter-se aberto a todos os temas que dizem respeito à condição
humana, mormente se encerram implicações morais.
Embora contrário ao aborto, admito a sua descriminalização em certos casos e
sou favorável ao mais amplo debate, pois se trata de um problema real e grave
que afeta a vida de milhares de pessoas e deixa seqüelas físicas, psíquicas e
morais.
Ao longo da história, a Igreja nunca chegou a uma posição unânime e definitiva.
Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez.
Atrás dessa diferença de opiniões situa-se a discussão sobre qual o momento em
que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência nem a
teologia tem a resposta exata. A questão permanece em aberto.
Santo Agostinho (séc. IV) admite que só a partir de 40 dias
após a fecundação se pode falar em pessoa. Santo Tomás
de Aquino (séc. XIII) reafirma não reconhecer como humano o embrião que ainda
não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a "alma racional".
Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a
partir do Concílio de Trento (séc. XVI). Mas foi contestada por teólogos que,
baseados na autoridade de Tertuliano (séc. III) e de santo Alberto Magno (séc.
XIII), defendem a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se de
um ser humano em
processo. Contudo, a discussão encerra-se oficialmente com a
encíclica Apostolica Sedis (1869), na qual o papa Pio IX condena toda e
qualquer interrupção voluntária da gravidez.
No século XX, introduz-se a discussão entre aborto direto e indireto. Roma
passa a admitir o aborto indireto em caso de gravidez tubária ou câncer no
útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro.
Bernhard Haering, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto
quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou se o dano moral
e psicológico causado pelo estupro impossibilita aceitar a gravidez. É o que a
teologia moral denomina ignorância invencível. Nem a Igreja tem o direito de
exigir sempre de seus fiéis atitudes heróicas.
Roma é contra a descriminalização do aborto baseada no princípio de que não se
pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma
vida humana. A história demonstra, porém, que nem sempre a Igreja o aplicou com
igual rigor a outras esferas, pois defende a legitimidade da "guerra
justa" e da revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível
por outros meios (Populorum Progresio). É o princípio tomista do mal menor. Em
muitos países, a Igreja aprova a pena de morte para criminosos.
Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir
da fecundação, ela jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem
prescreve rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados…
É preciso encarar com seriedade as razões que induzem uma gestante ao aborto. A
opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder do
mais forte sobre o frágil. Tão frágil que podem ser encontradas
justificativas científicas para negar-lhe o título de humano. Para a
genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a
ginecologia-obstetrícia, desde a nidação. Para a neurofisiologia, só quando se
forma o cérebro. E para a psicosociologia, quando há relacionamento
personalizado. Em suma, o feto é uma espécie de subproletário biológico. Tão
reduzido à sua impotência que não tem como protestar ou rebelar-se.
Em muitos casos de aborto, o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem
que a fecundou ou pelos preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de
conveniências sociais que, paradoxalmente, decide extraí-lo em nome de sua
suposta liberdade. Liberdade que teme e da qual foge quando se trata de admitir
uma relação adúltera, assumir-se como mãe solteira ou exigir de seu parceiro,
ainda que casado com outra mulher, que se assuma como pai face à evidência de
uma vida em processo.
Há homens que, confrontados com uma inesperada gravidez, reagem com uma
covardia inominável, como se o problema fosse apenas da mulher. E há mulheres
coniventes com a omissão masculina, não raro por ter de optar entre o feto e o
afeto...
Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida com destino humano e,
portanto, histórico. Sob a ótica cristã a dignidade de um ser não deriva
daquilo que ele é e sim do que pode vir a ser. Por isso, o cristianismo defende
os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e
social.
O debate sobre se o ser embrionário merece ou não reconhecimento de sua
dignidade não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de
mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou
conveniência social.
Trata-se de mulheres muito pobres que, objetiva e subjetivamente, não têm
condições de assumir o filho; de prostitutas que dependem de seus corpos para
sobreviver e dar de comer a seus dependentes; de casais que se deparam com uma
gravidez imprevista que viria desestabilizar a vida conjugal e familiar; de mulheres
mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou que
engravidam involuntariamente após os 40 anos, quando aumenta a possibilidade de
nascer um filho com deficiência.
É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o
aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres que,
na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas ou a ajuda
de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. Uma legislação
em favor da vida faria este problema humano emergir das sombras para ser
adequadamente tratado à luz do Direito, da moral e da responsabilidade social
do poder público.
O teólogo González Faus opina que "mais do que o moralista, a existência
de situações-limites deve ser contemplada pelo legislador civil, que não está
obrigado a assegurar toda a moralidade e sim a convivência pacífica, nem está
obrigado a prescrever a heroicidade ou a procurar um "melhor" inimigo
do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se em evitar o mal maior. E é
possível que, nas atuais circunstâncias de nossa sociedade, a descriminalização
legal do aborto seja um mal menor." (Este es el hombre, Ed. Cristandad,
Madri, 1986, p. 277).
A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem
pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria.
Basta enviar a gestante a uma clínica particular e tudo se resolve. Mas como
ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco de perderem
o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as que, para obter
trabalho, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir ou
interromper a gravidez.
Se os moralistas fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se
tornasse necessário e todos pudessem nascer em condições sociais seguras. Ora,
o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a
penalização do latifúndio improdutivo e das causas que levam à morte, por ano,
cerca de 26 entre cada 1.000 crianças brasileiras que ainda não completaram
doze meses de vida?
A descriminalização não reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres
continuam a preferir o anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à
do parceiro. Diminui é o número de óbitos em conseqüência do aborto. Em países
onde o aborto não é criminalizado, inúmeras gestantes, ao procurar os serviços
sociais decididas a fazê-lo, são convencidas a ter o filho - o que não
ocorreria se vigorasse a criminalização.
"No plano dos princípios” – declarou o bispo Duchène, presidente da
Comissão Espiscopal Francesa para a Família – “lembro que todo aborto é a
supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém,
substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente no assunto em sua alma e
consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio,
tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar" (La Croix, 31/3/79).
Não se trata, pois, de legalizar o aborto, como se fez com o divórcio. Antes,
de impedi-lo e defender os direitos da vida em embrião. Assim, uma
legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas
campanhas contra o aborto; esclarecer suas implicações morais, físicas e
psicológicas; prever sanções aos empregadores que recusam mulheres casadas ou
não dão suficiente apoio às gestantes; criar postos de atendimento às gestantes
que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e,
inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada, procurem
convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos; ampliar a rede de Casas
da Mãe Solteira, de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam
induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; assegurar o salário-maternidade
e multiplicar o número de creches; criar o sistema telefônico de
atendimento às mulheres angustiadas por gravidez imprevista, o SOS Futuras
Mães; oferecer ajuda financeira às famílias que adotam crianças rejeitadas por
suas mães etc.
Em suma, assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral, psicológico e
econômico à gestante, bem como prescrever medidas concretas que socialmente
venham a tornar o aborto desnecessário.
Frei Betto é escritor, autor de “A mosca azul – reflexão sobre o poder”
(Rocco), entre outros livros.
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