Correio da Cidadania

Jornal do dia

0
0
0
s2sdefault

 

 

Nemo me confidenciou que, fora  certos prazeres íntimos e gastronômicos, nada lhe imprime maior deleite do  que, pela manhã, abrir a porta do apartamento e encontrar, sobre o tapete que lhe guarda a soleira, o jornal do dia. É como se, a cada manhã, virada uma  página de nossa existência, encontrasse ali o novo momento da cidade, do país,  do mundo.

Enquanto lhe preparam o café, aboleta-se  confortavelmente numa poltrona e percorre os olhos nas manchetes do dia. Lê as  chamadas políticas, que lhe soam repetitivas e, por vezes, vergonhosas, como  se os nossos representantes no poder público vivessem numa esfera protegida da  ética e, sobretudo, da voz dos que os elegeram. Toma ciência dos acidentes de trânsito, das novas descobertas científicas, da oferta de sofisticados equipamentos eletrônicos, das previsões meteorológicas.

Sente-se  constrangido ao visitar a página policial com os assassinatos em série, cujas  vítimas são, em geral, pobres e negros, num menoscabo completo do valor da  vida humana. Alegra-se quando se depara com a boa nova de que a Polícia  Federal desmantelou mais uma quadrilha de criminosos de colarinho branco.  Detém-se com atenção nas páginas dos esportes, à procura de detalhes sobre  seus times preferidos, e lê atento os colunistas que, informados dos  bastidores, comentam a crise dos clubes e o mercadejar de jogadores a preços  exorbitantes.

Não lhe agradam os editoriais, raramente neles se  detém, como se soubesse de antemão a opinião do jornal sobre os assuntos  enfocados. Para Nemo, editorial deveria vir em pequenas doses na mesma página  em que figuram as notícias, como elucidação ou contraponto ao fato. Contudo,  lê com avidez e interesse seus colunistas preferidos, como a confirmar, num texto bem escrito, uma opinião que também é sua, ele que carece de meio e forma adequados de expressão.

Passa ao segundo caderno, onde  figuram as colunas sociais, as novidades do mundo artístico, o lançamento de  livros, CDs, peças de teatro e filmes. Ainda que pouco saia de casa para  assistir aos espetáculos em cartaz, agrada-lhe saber das novidades. Observa as  fotos das colunas sociais, onde o estranho mundo da elite aparece sempre  sorridente e perfumado (jura que chega a sentir-lhe o cheiro), como se jamais  as celebridades sofressem de dor de barriga, de desespero diante de um filho drogado, de mágoa por terem sido preteridas na lista de convidados de uma recepção vistosa.

Nemo se distrai com as histórias em quadrinhos,  gosta em especial do Hagar, o Horrível e, por vezes, ocupa-se com as palavras  cruzadas e, de uns tempos para cá, com o sudoku.

 

Se uma notícia  lhe parece importante, rasga a página e guarda-a numa gaveta de recortes  amarelados que a faxineira insiste em dar cabo, mas ele, por razões que não  sabe explicar, acha que um dia poderão ser úteis. De fato, outro dia um amigo  insistiu que a Segunda Guerra Mundial derrotou Hitler e o nazismo graças ao desembarque das tropas aliadas, lideradas por EUA e Inglaterra, na Normandia.  Nemo revirou pilhas de jornais velhos, respirou poeira, e não encontrou o  artigo de um analista europeu, anticomunista, onde admite que Hitler perdeu a  guerra graças à resistência dos soviéticos. Combateram com a mesma garra com  que, no século XIX, expulsaram da Rússia as tropas de Napoleão, e em janeiro  de 1945, entraram em Berlim antes dos ocidentais.

Nemo fica  desapontado quando o jornal atrasa e o tapete da porta amanhece descoroado.  Ansioso por novidades, reclama pelo telefone e, antes que o atendam, já envia  a cozinheira à banca mais próxima.

Nemo tem consciência da  dificuldade de o jornal competir com a agilidade, em tempo real, da TV e da  internet. Ainda assim, apraz-lhe agarrar aquele maço de folhas nas mãos,  sentir o cheiro morno do papel, ouvir o farfalhar da página dobrada, ler os  fatos nas entrelinhas, sabendo que as notícias haverão de respeitar-lhe o  ritmo. Pode saborear o café sem que elas lhe fujam da vista.



Frei Betto é escritor, autor, em parceria com  Mario Sergio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros  livros.

 

Para comentar este artigo, clique {ln:comente 'aqui}.

0
0
0
s2sdefault