Correio da Cidadania

"Ditabranda" na Folha: direita, volver!

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Há males que vêm para o bem, lembra o dito popular. No último dia 17 de fevereiro, em Editorial contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, a Folha de S. Paulo qualificou, assim como quem não quer nada, en passant, de "ditabranda" o regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 a 1985.

 

Para que não reste nenhuma dúvida sobre o que foi escrito na Folha, vai a seguir a transcrição do trecho que vem provocando tanta polêmica: "Mas, se as chamadas ‘ditabrandas’ - caso do Brasil entre 1964 e 1985 - partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso.".

 

Para começo de conversa, causa espécie que o jornal escreva "as chamadas ‘ditabrandas’" quando não há notícia de que alguém tivesse, antes da Folha, a idéia de jerico de qualificar o regime militar de tal forma. Este observador fez uma busca no Google e constatou que a pesquisa retorna apenas as referências à polêmica iniciada pela Folha. Ninguém antes qualificou a ditadura brasileira de "ditabranda".

 

Aliás, a busca no Google já vem carregada de ironia, pois, antes da primeira indicação de link, o buscador pergunta: "você quis dizer dieta branda?". Como bem sabem os iniciados, toda vez que alguém erra a digitação da palavra, o Google cuida de corrigir ou sugerir o nome correto. Ditabranda, portanto, é coisa lá da rua Barão de Limeira mesmo. Dieta branda teria sido realmente mais feliz.

 

Mas até aqui, é justo dizer, a direção da Folha e seus editorialistas têm todo o direito de achar que os militares pegaram leve. É uma questão de gosto e escolha, provavelmente o assinante do Estadão jamais leria tamanho despautério, ainda que o jornal se posicione de maneira muito mais conservadora do que a Folha em várias questões. A razão para isto é simples: O Estado de S. Paulo sofreu bem mais com a censura e sabe o quão duro foi o dito governo.

 

De toda maneira, o diário da família Frias não precisa se envergonhar em qualificar de ditabranda o regime em questão, da mesma maneira que a turma da Abril não só pensa que pegaram leve como anda saudosa de um novo período semelhante, especialmente para tirar essa gente barbuda e mal educada que insiste em permanecer altamente popular em meio à maior crise do capitalismo.

 

Nota da Redação: jornal muda de rumo

 

Não foi no editorial, portanto, que a Folha perdeu a mão. Nos dias que se seguiram à publicação daquela jóia do pensamento que emerge no nono andar do belo prédio do jornal, os leitores naturalmente reclamaram, enviando cartas indignadas à redação. O Painel do Leitor publicou algumas nos dias 18 e 19, mas foi no dia 20 de fevereiro que o jornal mostrou a sua verdadeira cara. Depois de uma sequência de cartas de leitores, apareceram duas de "figurões", seguidas por uma inacreditável resposta da Redação, como segue abaixo.

 

"Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de ‘ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar "importâncias" e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ‘doce’ se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala - que horror!". MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES, professora da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP)

 

"O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana". FÁBIO KONDER COMPARATO, professor universitário aposentado e advogado (São Paulo, SP)

 

"Nota da Redação: A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ‘indignação’ é obviamente cínica e mentirosa".

 

É preciso ler com calma a tal Nota da Redação. Que a Folha respeite a opinião dos leitores é o mínimo que se pode esperar. Imagine o grau de arrogância, que já não é baixo, se não respeitasse... Mas o que realmente choca neste caso é a Redação classificar de "obviamente cínica e mentirosa" a indignação de Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, como se para que os dois se indignassem com a barbeiragem do jornal fosse necessária a indignação prévia com Fidel Castro.

 

Este observador aprendeu com seu avô, pioneiro do ensino de Filosofia na Universidade de São Paulo, que o fiofó nada tem a ver com as calças. Ou, como diria outro filósofo, este da esfera futebolística, "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".

 

Comparato e Benevides não têm "autorização" da Folha para se indignarem, precisam antes bradar que não gostam de Fidel e seus amigos e, principalmente, que Cuba é uma DI-TA-DU-RA. Ou será que se os eméritos professores também qualificarem o regime cubano de "ditabranda" a Folha já deixaria de considerar "cínica e mentirosa" a indignação dos dois?

 

O pior de tudo realmente não foi o editorial, bem lamentável, mas a Nota da Redação de 20/2. Pior, sim, porque todo foca que passou uma semana em qualquer redação do país sabe que uma nota dessas não é publicada sem a anuência da direção do jornal. Por mais que o editor do Painel do Leitor vista a camisa do jornal, ele não tem autonomia para chamar Fábio Konder Comparato de cínico e Maria Victoria Benevides de mentirosa. A nota veio de cima, o que só reforça a idéia de que também o editorial foi cuidadosamente pensado para que o jornal emitisse o juízo de valor que tem, hoje, sobre a ditadura brasileira.

 

Não será surpresa se a Folha roubar Reinaldo Azevedo ou Diogo Mainardi da Veja. A esta altura, é bem provável, inclusive, que ambos já tenham sido sondados. E, ironia das ironias, não demora muito para o leitorado paulista de esquerda migrar para o Estadão. Há mesmo males que vêm para o bem: o nível de azia na leitura será bem menor...

 

***

 

PS em 22/02: O ombudsman da Folha, em sua coluna semanal publicada no domingo (22/02), parece concordar com este observador. Evidentemente, Carlos Eduardo Lins e Silva foi mais ameno na forma, mas não deixou de assinalar o despropósito da Nota da Redação do jornal, conforme se pode ver abaixo:

 

"Duas opiniões que mobilizam muitos leitores

 

Já me referi aqui ao escopo do trabalho do ombudsman, que não abarca as opiniões publicadas pelo jornal, em editoriais, colunas ou artigos.

 

O ombudsman se atém aos aspectos técnicos, factuais, comprováveis, verificáveis. Opinião é como religião, time de futebol, convicção ideológica: cada um tem a sua e nenhuma é melhor que outra.

 

Mas, talvez porque, como ensinava Spencer, a opinião é determinada em última análise pelos sentimentos, não pelo intelecto, ela mobiliza manifestação de muitos leitores.

 

Esta semana, duas motivaram pelo menos 115 mensagens. Sem entrar no seu mérito opinativo, vou tratar de ambas.

 

Um post de blog da Folha Online trazia no título as palavras vadias e vagabundas acima de foto em que apareciam Marta Suplicy e Dilma Rousseff. Pareceu-me uma insinuação de mau gosto e insultuosa.

 

Um editorial com referência ao regime militar brasileiro provocou cartas publicadas no ‘Painel do Leitor’. Resposta da Redação a duas delas na sexta foge do padrão de cordialidade que julgo essencial o jornal manter com seus leitores".

 

***

 

PS em 26/02: O diário da Barão de Limeira publicou nesta quinta-feira (26/2), no Painel do Leitor, as duas cartas reproduzidas abaixo. Sem resposta malcriada, desta vez. Será que a direção do jornal percebeu que essa história de "ditabranda" não caiu bem e resolveu recuar? É cedo para saber, mas é o que indica a ausência de resposta aos professores. Menos mal, só que ainda falta um bom "mea culpa" sobre o trocadilho infame.

 

"Em resposta aos insultos a mim dirigidos na Nota da Redação de 20 de fevereiro passado (‘cínico e mentiroso’), reitero meu protesto contra o editorial, que considerou brando o regime militar brasileiro, cujos agentes mataram mais de 400 pessoas e torturaram milhares de presos políticos". FÁBIO KONDER COMPARATO, professor titular da Faculdade de Direito da USP (São Paulo, SP)

 

"As injúrias da Redação da Folha não me intimidam. Continuarei denunciando os crimes da ditadura, seus responsáveis civis e militares, bem como seus aliados - ontem e hoje". MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES, professora titular da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP).

 

Luiz Antonio Magalhães é diretor executivo do Observatório da Imprensa, onde este texto foi originalmente publicado.

Blog do autor: http://www.blogentrelinhas.blogspot.com/

 

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Comentários   

0 #8 Clara Luna Pereira 08-09-2009 12:24
Acredito que esse artigo teve um reflexo muito negativo.
não foi o que Eduardo Graeff quis demonstrar..
nao que a ditadura brasileira foi algo irrelevante, mas que comparada à chilena e a argentina, realmente foi 'branda'.
nas demais as mortes e perseguições foram de milhares, aqui nao chegou a 500.
nao que eu concorde com o que foi escrito, mas o neologismo nao deveria ser criticado de tal maneira. foi apenas mal interpretado.
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0 #7 \"ditabranda\"Luciana Gomes 08-04-2009 13:12
A atitude da Folha neste episódio ultrapassou o inaceitável. Não só ela deve ser processada e condenada pelos diretamente ofendidos (os eminentes professores) como deve ser execrada pela opinião pública e banida como meio de comunicação, e essa atitude compete a nós, os indiretamente - porém não menos - ofendidos: povo brasileiro! Se a Folha tem o seu direito à opinião, nós temos o nosso direito de cidadãos e consumidores, de não consumir essa apologia à tortura, que não encontro nome pra classificar.
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0 #6 Ampliando o DebateAldo Santos 09-03-2009 09:07
Repúdio as declarações do jornal Folha de São Paulo.

No seu editorial do dia 17 de fevereiro de 2009, o Jornal Folha de São Paulo caracterizou o período de 1964 a 1985 como um período onde a ditadura militar teve uma atuação branda; inclusive a terminologia empregada pelo jornal foi “Ditabranda”.
O contexto do seu posicionamento estava relacionado com a crítica à vitória de Hugo Chaves na Venezuela.
Diante desse posicionamento, inúmeros leitores se indignaram e a resposta do jornal foi no sentido de desqualificar os intelectuais Fábio Comparato e Maria Victória Benevides.
A ditadura militar ocorreu com implantação de um golpe de Estado, instituiu o terror como prática de controle e imposição do poder político no Brasil e concomitantemente ocorreu em outros países da América Latina. Com a instalação desta prática, os direitos mínimos foram suprimidos e o resultado foi à perseguição, a prisão, a tortura e a morte de centenas de militantes políticos.
Nos dias atuais, a fisionomia da direita se revela e se encoraja pela absoluta falta de empenho o do atual governo que se omite em relação aos direitos humanos e se acovarda diante dos militares ao não revelar os bastidores, e atos praticado pelos ditadores durante o período da ditadura militar no Brasil.
Essa omissão, longe de anistiar, confinar ou sepultar esse passado, incentiva e encoraja os verdugos deste período, estimula até mesmo os alguns órgãos de comunicação como a explicitação feita e publicada pela folha neste abjeto editorial.
Esse debate revela o grau de cumplicidade da imprensa brasileira com o regime militar no período de chumbo, que até hoje, toma partido ao lado dos torturadores e assassinos “tutelados” pelo poder político e militar do Estado Brasileiro.
Vários livros no Brasil têm revelado a face cruel , nefasta e horrenda da ditadura militar. Argumentos dessa natureza devem merecer por parte de todos nós o mais veemente repúdio, desprezo e combate, por tratar de forma leviana e truculenta os mais simples e fundamentais direitos da pessoa humana.
Registramos também nossa irrestrita solidariedade para com os perseguidos, torturados e mortos nesse período, bem como com os intelectuais que não admitem a neutralidade histórica ao tomarem partido do lado da classe trabalhadora, condenando esses desprezíveis opressores ao lixo da história.
Como parte significativa desse debate, saudamos o manifesto lançado por intelectuais no sábado, dia 21 de fevereiro de 2009, que repudia a folha de São Paulo.
“O texto condena \\\"o estelionato semântico manifesto pelo neologismo \\\'ditabranda\\\' e, a rigor, uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que se beneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos no pos-1964\\\". Segundo os signatários do manifesto, \\\"a direção editorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros e brasileiras que lutaram pela redemocratização do pais\\\".
Outra motivação do abaixo-assinado foi prestar solidariedade aos professores acadêmicos Maria Victória de Mesquita Benevides e Fabio Konder Comparato, cuja legítima indignação ao editorial foi tachada de \\\"cínica\\\" e \\\"mentirosa\\\" pela Folha. \\\"Pela luta pertinaz e consequente em defesa dos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato merecem o reconhecimento e o respeito de todo o povo brasileiro\\\", diz o texto”.
Nesse momento, além de nossa indignação para com esse episódio, reiteramos nossa manifestação para que o atual governo abra imediatamente os arquivos da ditadura militar, que representa o direito inalienável da pessoa humana, como resposta aos defensores anônimos e assumidos da ditadura Militar no Brasil e em qualquer parte do mundo.

Avançar a Luta Socialista é preciso!

Aldo Santos, ex-vereador, membro da Direção Nacional e presidente do Psol de São Bernardo do Campo.
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0 #5 ComentárioPaulo Henrique 04-03-2009 14:27
Parabésn pelo texto e pela reflexão colocada. Concordo com a opinião anterior de que a comparação Folha - Estadão não foi muito feliz. Um abraço cordial, Paulo Henrique
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0 #4 Eos que dizem que a Dita foi BOA!!!!!!!!Prof. João Batista 02-03-2009 13:47
Trata-se dos que foram nomeados sem concurso e/ou por concurso fajuta como docente das universidades públicas, na e pós didatura de 64. Um trecho da minha pesquisa é:

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Tanto é assim que, que ainda hoje é possível encontrar docente público federal que jura até pelo sagrado que o Regime de 64 era dotado de uma bondade tão extremada pelo nosso educacional, e tão extremada mesmo, ao ponto de o ter nomeado sem concurso apenas por ele ter convencido general avalizador de ficha dos ingressantes de ser o mais competente academicamente possível para o cargo.
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0 #3 \"ditabranda\"Hélio 02-03-2009 06:49
Ao que me consta a "ditabranda" jamais realizou consulta popular ou plebiscito. Os insultos graciosos e reiterados da Folha, o Estadão e Veja há muito me fizeram desistir de assinar esses veículos.
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0 #2 Um suspeito pelo termo DITABRANDA na FolRalf Rickli 28-02-2009 14:45
Parabéns pelo artigo, Luiz - e olha aí uma pista interessante sobre o aparecimento da palavra "ditabranda" na Folha: o artigo de opinião de 17/09/2004 assinado por "Eduardo Graeff, 54, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique", em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1709200410.htm
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0 #1 Nem Folha, nem EstadãoMarsvelo 28-02-2009 10:22
Achei muito bom por em evidência a infame Folha de S. Paulo, mas não concordo que o leitor de esquerda tenha que migrar para o Estadão.
Os dois jornais são péssimos para o país.
Acho sim que o leitor poderia migrar para outras formas saudáveis de leitura (Le Monde Diplomatique Brasil, BBC Brasil, Caros Amigos, Revista Brasil e até mesmo Carta Capital).
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