Correio da Cidadania

Mais que dois

0
0
0
s2sdefault

 

 

Vivi,

 

Por coincidência, fui a vários casamentos esse mês. Nenhum como o seu. Para dizer a verdade, foi a primeira vez que assisti a uma cerimônia fora do centro da cidade.

 

Os casamentos que freqüento são chiques e seguem um determinado padrão. Não que eu seja particularmente chique. Mas acontece que nasci, como você sabe, na zona oeste da cidade. E você na zona leste. Moro no centro, você na periferia. Venho da aristocracia, você do proletariado. Nos encontramos no rio caudaloso da luta social – do mesmo lado, é claro. E por mais que eu tenha feito esforço na vida para descer socialmente, só existe uma coisa mais difícil do que isso em uma sociedade praticamente estamental como a nossa: subir. 

 

Nos casamentos que costumo ir a missa é breve, quando o ritual não é feito por amigos dos noivos, que falam. Existe uma lista de casamento, onde se espera que os convidados participem com um presente. Depois da cerimônia, há um jantar servido por um buffet, e então uma festa, onde geralmente as músicas também seguem um percurso: iniciam na valsa, passam por Frank Sinatra e deságuam  em uma seleção dos hits mais previsíveis – mais ou menos brasileiros, dependendo do perfil do casal (geralmente é menos). DJ nenhum assume riscos em um casamento. 

 

Mas o seu casório para mim foi novidade. Quero dizer que me emocionei com a cerimônia. Aquela igreja que vocês transformaram em circular. Abarrotada de gente, muitos jovens – os amigos. A cerimônia longa e despretensiosa como deve ser. Sem afetação, mas com densidade. Ali estávamos todos presentes.

 

Teu casamento me lembrou Solentiname, a comunidade cristã impulsionada por Ernesto Cardenal entre camponeses em uma ilha na Nicarágua. Ali se debatia o evangelho e construiu-se a Igreja como se não houvesse receita. Brotou, como da terra. E, com a mesma naturalidade e graça, a comunidade abraçou a guerrilha quando chegou. E a ilha foi arrasada pelo exército.

 

Não vou mentir para você: na minha visão, a Igreja está historicamente condenada, é uma questão de tempo. Lentamente, passei a convergir com a percepção marxista da Igreja como instituição conservadora e incompatível com a libertação humana.

 

Mas não deixei de cultivar - e talvez com maior intensidade - uma espiritualidade alicerçada na sensibilidade para todo o vivo, e principalmente o humano.

 

É por isso que me sinto em casa no terreiro da teologia da libertação. E sua cerimônia transpirou esta energia. Te digo porque senti na pele: é uma vibração inconfundível, que, na linguagem cristã, é a presença inefável do espírito santo. Ou, simplesmente, da experiência mística.

 

Aquilo foi um ambiente revolucionário, porque a cerimônia e a própria Igreja apareceram ali feitas por vocês – por nós. A união faz a força. Sentimos que, lado a lado, somos muito mais que dois. Então podemos tomar o céu de assalto. É aí que o cristianismo  converge com o comunismo: quando a utopia somos nós.

 

Vivi: desejo sorte e felicidade imensa na delicada militância cristã implícita à vivência conjugal. Sabemos que o amor nunca soma, multiplica. É esta a graça do casamento.

 

Uma relação de amor profunda só faz aguçar a sensibilidade e radicalizar a militância. Aqueles que dizem que o impulso militante vai passando à medida que a vida vai se enquadrando, na minha opinião, têm um conhecimento superficial da experiência amorosa. Não foi isso que vivi quando tive uma filha.

 

Que a sua profundidade com o Fernando possa multiplicar!

 

 

Fábio Luís é jornalista.

 

Para comentar este artigo, clique aqui.

 

0
0
0
s2sdefault