Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – legados do patrimonialismo

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A “libertação” dos escravos brasileiros, em 1888, ocorreu sem reforma agrária. Isto é, sem permitir o acesso dos trabalhadores rurais libertos à propriedade da terra. Antes, em 1850, já havia incluído a proibição, por lei, do “apossamento” de terras devolutas. Estes são dois dos principais legados do patrimonialismo brasileiro, que permanecem ainda hoje, apesar da “reforma agrária” e do “direito de posse” haverem se tornado formalmente legais.

 

O esmagamento dos camponeses de Canudos, em 1902, e do Contestado, em 1916, ambos incluindo artilharia, e de Pau de Colher, em 1938, incluindo bombardeios aéreos; a repressão aos posseiros de Porecatu, em 1948, e de Trombas e Formoso, nos anos 1950-60; o esmagamento das “Ligas Camponesas” do Nordeste, no pós-1964; e milhares de eventos idênticos, nem sempre divulgados, assim como de “ocupações” e outras ações do MST, desde os anos 1990, são apenas momentos dos esforços baldados dos camponeses pelo acesso privado e/ou comunitário a terra.

 

O sistema de conluio entre os principais “coronéis regionais”, que resultou na República Velha, com predominância de São Paulo e de Minas Gerais (café e pecuária, ou “café com leite”), foi outro legado daquele patrimonialismo. A “eleição”, para as diversas esferas parlamentares de políticos “indicados”, “financiados” ou “corrompidos” pelos coronéis, majores e capitães do sertão, é outro legado que fez escola, e ainda hoje se mantém vigente.

 

O “agrarismo” como pseudoteoria científica, que ainda pontifica em alguns círculos acadêmicos e políticos, também é um legado patrimonialista, agora reforçado pela moderna agricultura capitalista do “agronegócio”, subordinada ao mercado internacional de commodities. A utilização da máquina pública, seja executiva, parlamentar ou judiciária, para benefício privado, “legal” ou ilegal, que também continua pontificando no sistema capitalista em que o Brasil vive, também é legado daquele patrimonialismo.

 

A subserviência de grande parte da burguesia brasileira ao capital internacional, tanto norte-americano quanto europeu e japonês, faz parte do legado do patrimonialismo colonial e semicolonial. Nesse patrimonialismo, primeiro os latifundiários e comerciantes que dominavam a produção brasileira subordinaram-se a Portugal. Mas, à medida que Portugal dependia cada vez mais da Inglaterra, passaram a fingir fidelidade à antiga metrópole, embora sua obediência se voltasse para a Inglaterra. Mais tarde fizeram o mesmo com a Inglaterra, voltando-se cada vez mais para a subserviência aos Estados Unidos.

 

Assim, desde a Independência, o “patriotismo” e o “nacionalismo” da burguesia cabocla estão impregnados daquilo que Nelson Rodrigues chamou de “síndrome de vira-lata”. O que nada tem a ver com uma sociedade supostamente constituída “por indivíduos emotivos..., corruptos e inconfiáveis”, como pensa o autor de A Tolice da Inteligência Brasileira, embora indivíduos desse tipo também estejam presentes em nossa sociedade. Aqui, a vassalagem burguesa é realizada por indivíduos sem emoção, nem sempre corruptos e, também, “inconfiáveis”, na medida em que não podem suportar pressões para “delações premiadas”.

 

Tudo isso tem a ver com as características das classes dominantes que tornaram o Brasil o último país do mundo a acabar com a escravidão. Essas classes latifundiárias e burguesas, que jamais permitiram a reforma agrária, só se dividiram radicalmente durante os anos 1920, quando seu setor mais rico e mais forte (cafeicultura) impôs a suas demais frações um “socialismo às avessas”. Isto é, no processo de crise mundial capitalista, a socialização dos prejuízos das exportações de café e a apropriação privada dos lucros. O que estava coincidindo, perigosamente, com o crescimento do anarquismo, do socialismo popular e do comunismo, que haviam mostrado sua cara nas grandes greves de 1917.

 

Numa singularidade bem brasileira, não foi o nascente capitalismo paulista que resolveu enfrentar o Estado latifundiário. Tal “capitalismo” foi incapaz de adotar ações típicas da democracia burguesa, pelo menos para acelerar a industrialização. Foi incapaz de tornar o país menos dependente das importações estrangeiras, e de mudar o tratamento dos conflitos operários, até então considerados “casos de polícia”. Sequer passou pela cabeça dos novos “capitães da indústria” que, para evitar que as lutas dos trabalhadores se transformassem em “revoluções comunistas”, seria preciso tratá-las, pelo menos, como “casos” e “demandas sociais”.

 

Para retirar a burguesia do trilho do patrimonialismo latifundiário e colocá-la num rumo relativamente burguês foi preciso que frações latifundiárias do sul e do nordeste do país mobilizassem setores das classes intermediárias, representadas pelos “tenentistas”, e realizassem a “revolução liberal” de 1930. Assim, a rigor, pelo menos em relação à modernização brasileira do século 19 e das primeiras décadas do século 20, Sérgio Buarque tinha razão: era realmente uma modernização para “inglês ver”.

 

Foi preciso a crise mundial de 1929, a ascensão do fascismo e do nazismo na Itália, na Alemanha e no Japão, a preparação aberta de uma nova guerra mundial, tendo como alvos principais a destruição da União Soviética e a repartição mundial das colônias e semicolônias, e a ascensão dos movimentos trabalhistas e democráticos no Brasil, para que, numa ironia da história, coubesse a uma fração latifundiária dar início à superação do patrimonialismo.

 

Foi o “falso liberalismo” varguista que fez o Brasil ingressar na modernidade industrial capitalista, através de uma série de ações contraditórias. Derrotou militarmente a candidatura do “coronelismo paulista”, assim como seu levante armado “constitucionalista”, que contou com o apoio de seus noviços capitalistas industriais. Mas, financiou a “queima” da produção excedente de café para salvar os cafeicultores. Prometeu acabar com o “coronelismo” rural, mas apenas substituiu antigos “coronéis” por novos, muitos dos quais oriundos do “tenentismo”.

 

Proclamou a necessidade dos investimentos privados para desenvolver a indústria. Mas tornou o Estado financiador ativo de projetos industriais, tendo à frente aliados políticos, que se transformaram em prósperos “homens da indústria”.

 

Estabeleceu uma legislação de proteção aos trabalhadores industriais. Mas “atrelou” o sindicalismo ao Estado e esmagou à força qualquer tentativa de luta operária. Proclamou-se defensor da democracia liberal, mas comandou um golpe fascista, estabelecendo uma ditadura sanguinária. Jogou com uma possível aliança com o eixo nazifascista, chantageando os Estados Unidos para obter o projeto de implantação da indústria do aço. E, embora tenha perseverado na política industrializante, não moveu sequer uma palha para realizar uma das principais reformas da história de desenvolvimento capitalista em vários outros países. Isto é, a reforma agrária.

 

A classe latifundiária continuou impoluta, concentrando em suas mãos não só as terras e sua “renda natural”, mas também o principal estoque de força de trabalho do país. Apesar disso, e apesar das obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, a essa altura da história brasileira o velho patrimonialismo começou a se tornar superado, da mesma forma que o velho culturalismo. Portugal ainda aparecia como a matriz da herança brasileira, mas a influência daqueles autores foi se diluindo no tempo. Na prática, o “mestiço lindo” de Freyre, o “homem cordial”, de Buarque, e o “patrimonialismo” tardio de Faoro deixaram de fazer parte real do debate sobre os destinos do Brasil.

 

Daí em diante, o país viu-se compelido a atravessar uma série de períodos convulsivos. Passou pelas tropelias da semiditadura regressiva de Dutra. Tentou retomar, com Vargas, uma nova onda industrial, tendo o Estado como mola propulsora. Mas isso se confrontou com a pressão dos capitalismos avançados norte-americano e europeu, que haviam mudado sua política de exportação de capitais, de não-industrializante para industrializante. As tentativas de golpe ditatorial, em 1954 e 1955, só foram frustradas porque os planos de governo de JK previam a abertura do país àquelas exportações de capitais.

 

Nessas condições, a segunda onda de industrialização, de 1956 a 1960, representou a subordinação e dependência não só externa do país, mas também uma exploração diretamente interna da economia nacional por empresas do capitalismo avançado estrangeiro. E, apesar de tal onda haver estendido a legislação trabalhista às zonas rurais, e aumentado a demanda por mão-de-obra, o sistema latifundiário manteve-se intocado. No caso brasileiro, a extensão das terras e sua pequena densidade populacional poderiam fazer com que uma reforma agrária representasse redução da oferta de mão-de-obra barata à indústria.

 

No contexto de agravamento da Guerra Fria, e de necessidade de exportação de capitais pelos Estados Unidos, Alemanha, Japão e França, a oferta de mão-de-obra barata no mercado nacional de trabalho industrial, tendia a unificar o conjunto da burguesia “nacional” ao capital externo. Só o PCB tinha ilusão de que a reforma agrária e a luta anti-imperialista interessavam a essa burguesia.

 

Assim, o crescimento da luta de classes pela reforma agrária e contra a desnacionalização da economia brasileira foi o acicate para a reação conservadora e reacionária e para o desencadeamento do golpe militar de 1964. No entanto, para realizar a terceira onda de industrialização massiva, capaz de assimilar uma grande importação de capitais externos, a coalizão das burguesias industriais estrangeiras e nacional precisava resolver o problema da oferta substancial e massiva de mão-de-obra, então estocada nos latifúndios, inclusive por dívidas. E isto precisava ser feito sem romper a grande aliança conservadora e reacionária delas com a classe latifundiária.

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

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