‘Pragmatismo convencional’ pode comprometer avanços da nova Constituição do Equador

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Eduardo Gudynas
29/07/2008

 

A Assembléia Constituinte do Equador acaba de aprovar a proposta de uma nova Constituição, que será votada em um referendo no próximo dia 28 de setembro. As análises simplistas mostram tal processo em preto ou branco, progressista ou autoritário. Os conservadores afirmam que a nova Constituição é quase um autoritarismo presidencial, enquanto que os analistas da esquerda convencional garantem ser uma nova forma de democracia popular e representar a morte do neoliberalismo. Porém, esse tipo de análise esquemática não é útil, sendo imprescindível uma apreciação mais rigorosa.

 

Comecemos por recordar que a Assembléia começou a trabalhar em 29 de novembro de 2007, com uma ampla maioria de representantes da coalizão governamental ‘Aliança do País’ e alguns grupos coligados, da esquerda independente e do movimento indígena Pachakutik. O processo era mais organizado e transparente que no caso das reformas tentadas na Venezuela e na Bolívia. As sessões eram transmitidas pela televisão pública, os documentos estavam disponíveis na internet e foram recebidas milhares de delegações cidadãs em sua sede em Ciudad Alfaro e nas cercanias da cidade de Manta, na costa equatoriana no Oceano Pacífico.

 

No entanto, diferentemente do que ocorreu em outros países, no Equador se dissolveu o Congresso e, portanto, a Assembléia Constituinte também cumpriu funções legislativas (aprovando 19 "decisões" a respeito de grandes assuntos, 6 leis e 19 anistias e indultos). Sendo assim, as tarefas eram muitas e a aprovação dos artigos avançava lentamente.

 

O resultado final foi uma proposta de 444 artigos e 30 disposições transitórias. O texto é muito complexo, há seções próprias de uma Constituição, entendidas como marco básico que estabelece novos valores e procedimentos básicos para uma nação, e também inclui muitas disposições que são próprias de leis, ou inclusive decretos.

 

A Constituição apresenta várias novidades. Definem-se quatro poderes de Estado: Executivo, Judiciário, Legislativo (que fica em mãos de uma Assembléia unicamaral) e um poder de Transparência e Controle Social. Ainda assim, cria-se uma Corte Constitucional que tem a faculdade de interpretar os textos constitucionais e dirimir possíveis conflitos.

 

Entre os aspectos destacáveis, encontram-se o conceito do "bem viver" (sumak kaway) como uma alternativa pela qualidade de vida, um novo reconhecimento de vários sistemas econômicos possíveis; a defesa da água como um bem público; metas a respeito da segurança alimentar, junto à gratuidade de vários serviços públicos e a plurinacionalidade do Estado. Na parte ambiental, reconhecem-se os direitos da Natureza, indicando-se que a "Pachamama, onde se reproduz e se realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, sua manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais". Tais aspectos fazem da nova Constituição uma das mais modernas e originais da América Latina.

 

Apesar desses pontos positivos, a última etapa do trabalho da Assembléia Constituinte esteve repleta de problemas devido às pressões do presidente Rafael Correa sobre alguns assuntos. A título de exemplo, pode-se lembrar de sua insistência em abrir o setor da mineração à exploração de grandes empresas e seu rechaço de consentimento prévio e informado das comunidades locais frente à mineração ou à exploração petroleira.

 

As pressões recaíram sobre o presidente da Assembléia, Alberto Acosta, que foi qualificado como ‘demasiadamente democrático’. Acosta, uma figura chave na coligação Aliança do País e alinhado com os movimentos sociais e organizações indígenas, acabou renunciando à presidência. Sob uma nova direção, em poucas semanas se aprovaram cerca de 400 artigos, o que foi aproveitado pela oposição de direita para acentuar seus ataques à constituinte.

 

As denúncias de intervenção presidencial no seio da Assembléia Constituinte se repetiram nas últimas semanas. Correa afirmou que a versão final continha "falhas horrorosas" e ordenou que alguns de seus colaboradores corrigissem o texto, o que alimentou ainda mais essas denúncias. No debate sobre a plurinacionalidade do Estado, o presidente rejeitou as propostas de incluir o kichwa como língua oficial; Correa chegou a afirmar que a segunda língua deveria ser o inglês. Ainda que, finalmente, os assembleístas da Aliança do País tenham revertido a decisão presidencial, e incluíram o kichwa e o shuar como línguas oficiais, existe um distanciamento entre organizações cidadãs e indígenas em relação ao presidente.

 

A proposta constitucional final reforça a figura presidencial, tanto sobre o Congresso como sobre outros organismos chaves, como a Corte Constitucional. É necessário entender essa reação no contexto equatoriano, onde a chamada ‘partidocracia’, os políticos tradicionais e o parlamento, estão fortemente desprestigiados. Mesmo reconhecendo mecanismos de consulta popular, o Estado fica muito dependente do presidente de turno. Esse extremo, e a possibilidade de um novo mandato de Correa, mais uma reeleição adicional, desataram uma forte oposição conservadora.

 

A caminhada do governo Correa é similar a de outros governos progressistas, com todos os seus pontos cegos. Tem um discurso nacionalista, mas aposta nas exportações globais de matérias primas; invoca direitos cidadãos, mas rejeita direitos reprodutivos da mulher; fala em kichwa, mas rechaça a inclusão desta língua na nova Constituição e assim sucessivamente. No discurso de fechamento da Assembléia, Correa afirmou que "o maior perigo para o nosso projeto de país é esse esquerdismo e ecologismo infantil. Receio que não estou equivocado, apesar de talvez ter me faltado incluir o indigenismo infantil", com o que parece se distanciar cada vez mais de muitos movimentos sociais para afirmar uma estratégia pragmática e convencional de tipo desenvolvimentista.

 

A nova Constituição tem pontos cegos, mas aparece como um passo adiante no Equador, terminando com muitos privilégios antigos e distorções, assegurando direitos básicos que estavam esquecidos e obrigando a novas estratégias de desenvolvimento. Mas também é certo que muitos desses avanços podem se desintegrar sob o pragmatismo convencional que tanto prejudica o progresso latino-americano.

 

Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.

 

Traduzido por Gabriel Brito.

 

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