Bolívia: megarrepresa na Amazônia e os testemunhos de uma anunciada e futura morte

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Eduardo Gudynas
15/08/2016

 

 

 

 

 

Estamos em um momento histórico em que somos testemunhas diretas das ações que levam direta e inexoravelmente a sérias perdas ecológicas. Presenciamos o início de mortes anunciadas. Um dos casos mais graves na América Latina é a recente decisão de construir uma megarrepresa na Amazônia boliviana. Ali há várias semelhanças e muitas lições para o continente (*).

 

Dias atrás, o presidente da Bolívia, Evo Morales, anunciou o início dos estudos para construir uma enorme represa no rio Beni, no cantão conhecido como El Bala. O pacote apresentado é de uma represa geradora de eletricidade, associada a outros dois represamentos, com uma potência que iria de 1600 a 4 mil megawatts. Ou seja, os equivalentes entre uma e duas represas como a de Salto Grande no Uruguai.

 

É necessário descrever o lugar para entender as implicações dessa medida. O empreendimento se situaria no coração da Amazônia boliviana; recordemos que a Amazônia se estende muito além do Brasil e precisamente é a Bolívia o país que a tem em mais alta proporção de seu território dentro dessa bacia. O rio Beni é enorme e deságua no rio Madeira, Brasil adentro, convertido em um dos maiores afluentes do rio Amazonas.

 

Na Bolívia, na região onde se planeja a represa, se encontram uma reserva biológica e uma área indígena de proteção (conhecida como Pilón Lajas), além de um dos parques naturais mais importantes do mundo: Madidi. A razão dessa relevância se deve a que esses ambientes tropicais são refúgio de mais de 12 mil espécies de plantas, 800 espécies de ave, 200 de mamíferos, centenas de anfíbios e répteis, e umas 300 espécies de peixes. Em 2012, a sociedade internacional para a conservação da vida silvestre determinou que esse parque é o lugar de maior diversidade ecológica em todo o planeta.

 

Estive navegando o rio há uns anos e sem dúvida a paisagem no estreito de El Bala é impressionante: um rio amazônico, rodeado de densa vegetação, encaixado em altas muralhas de pedra, também cobertas de flora tropical. É possivelmente um dos lugares mais bonitos do nosso continente. É como estar diante do conhecido cânion do rio Colorado, nos Estados Unidos, mas, no lugar de uma paisagem seca e avermelhada, ser testemunha da exuberância verde em estilo amazônico.

 

Os engenheiros planejam aproveitar-se desta muralha e apontam para um dique de 150 metros de altura, com o qual inundariam aproximadamente 200 mil hectares. Isso explica que será inevitável a perda dos territórios ou mesmo o impacto direto sobre a vida silvestre e comunidades humanas. Desaparecerão os habitats de toda essa riqueza ecológica, incluindo espécies emblemáticas e muito ameaçadas, como o tapir (uma espécie de anta) e o jaguar. Além disso, impactará diretamente sobre comunidades indígenas tacanas, chimanes, tsmanes e mesetenes.

 

Alguns pensarão que essa discussão é muito distinta dos debates realizados no Uruguai, por exemplo. Mas um exame atento mostra muitas similaridades, tais como a decisão governamental uruguaia de “correr” com a demarcação de áreas protegidas para que não ficassem “dentro” do possível entorno da mineradora que planejava construir em Aratirí, ou fingir surdez aos reclames contra os impactos ambientais na costa oceânica.

 

A lógica governamental boliviana se baseia em postular a necessidade da represa, que gerará empregos e permitirá futuros bons negócios. Ideias muito similares àquelas se expressam no Uruguai e devem ser analisadas. Quando se projeta algo desse tamanho, aparecem muitas dúvidas e alertas. Um empreendimento deste tipo apenas oferece tantos empregos na fase de construção, ao passo que gera demasiados impactos negativos (que também têm custos econômicos) e nunca fica claro qual é o saldo líquido para o governo. Além disso, a geração de eletricidade desta obra não está enfocada no consumo boliviano, senão na ideia de exportá-la ao Brasil. Muitas dessas razões aparecem de forma análoga para defender projetos semelhantes no continente como os argumentos usados no Uruguai para defender a usina gaseificadora, por exemplo.

 

O caso da megarrepresa de Belo Monte no Brasil, também na Amazônia, é relevante, já que foi demonstrado que toda a obra é para produção energética (o país não necessitava desse aporte de energia), gerou gravíssimos impactos sociais e ambientais (que persistirão por décadas) e, na realidade, só serviu para nutrir esquemas de corrupção entre políticos e empreiteiras (segundo investigações judiciais, a empreiteira pagou subornos equivalentes a 30 milhões de dólares a políticos do Partido dos Trabalhadores e do PMDB para obter licenças de construção).

 

Mais além, a soma dos impactos das represas levaram a que inclusive a Comissão Mundial de Represas admitisse que os efeitos negativos a médio e longo prazo são muito maiores do que os estimados ou reconhecidos.

 

O presidente Evo Morales defendeu esta obra e ainda advertiu que espera que os ambientalistas se oponham. Ainda que com estilo diferente, o sentido é similar às burlas do então presidente Mujica por aqueles interessados em proteger nossos bovinos. Em paralelo, o governo boliviano implantou uma legislação que limita aquelas associações cidadãs que, por exemplo, questionem este e outros empreendimentos de desenvolvimento.

 

É assim que podemos estar presenciando o início de uma cachoeira de eventos que terminará em uma megaobra de duvidosa utilidade, mas com certeiros impactos sociais e ambientais. E as lições que podemos tirar para nossos países estão ali: diante de qualquer megaprojeto não se deve minimizar os impactos, nem manipular uma contabilidade que deveria incluir todos os custos ou mesmo calar os reclames populares.

 

 

 

Nota da Redação:


(*) O autor, uruguaio, coloca que as lições valem para o Uruguai, porém, para dialogar com a realidade brasileira e continental, vemos que as lições podem valer também para o Brasil, haja visto Belo Monte e as recém-canceladas barragens ao longo do Tapajós. Também no Chile e Equador há situações semelhantes, como o caso da reserva Yasuní, ameaçada por grandes empreendimentos petroleiros.

 

Eduardo Gudynas é analista da CLAES (Centro Latino Americano de Ecologia Social) em Montevidéu.

Publicado em espanhol aqui.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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