Correio da Cidadania

Tráfico de Pessoas: quem se importa?

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Nada melhor que um folhetim da Globo para deixar um tema em evidência. Falo do tráfico de pessoas e da abordagem feita na novela Salve Jorge. Não estou habilitada a entrar em pormenores dessa trama, porque, depois de me “viciar” na Carminha e na Nina, da anterior Avenida Brasil, só vejo de vez em quando o drama da Morena.

 

Na vida real, porém, o nefasto crime de tráfico humano está aí e precisa ser enfrentado pelo Estado e pela sociedade, de forma mais ativa e com maior conhecimento, sem deixar tanta margem de liberdade para os esquemas criminosos. Isso vem com a construção e consolidação de uma política pública para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (ETP), o que ainda está em curso em nosso país.

 

Na última década, o Estado brasileiro assumiu o ETP como um tema merecedor de especial atenção na sua agenda de direitos humanos e tem procurado combater esse tipo de violação com o desempenho das tarefas de prevenção, repressão e responsabilização indicadas na Convenção de Palermo da ONU e os seus protocolos adicionais.

 

No Protocolo de Palermo da ONU o Tráfico de Pessoas é definido como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração”.

 

O governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação a esta Convenção junto à Secretaria Geral da ONU, em 2004. O Decreto 5.015/2004 formalizou internamente os compromissos assumidos, permitindo o desenvolvimento de políticas públicas nessa seara. Em 2006 foi instituída a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, em janeiro de 2008, foi aprovado o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), finalizado em 2010.

 

No caminho trilhado para o ETP no Brasil, ficamos dois anos sem um Plano de Enfrentamento, entre 2010 e 2012, o que não significa inércia da sociedade ou do Poder Público em relação ao tema. Ao contrário: a rede de ETP se fortaleceu, as discussões com a sociedade se ampliaram, os órgãos se capacitaram e se estruturaram melhor para lidar com esse crime e suas vítimas. Além disso, houve a disseminação do tema, com a apreensão pelo senso comum do que é tráfico de pessoas.

 

Mas, faltava o Plano Nacional... E no dia 26 de fevereiro de 2013 foi publicado o II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas - PNETP (2013-2016). Este II Plano, amplamente debatido com a sociedade e com os órgãos e profissionais que atuam diretamente com o tema, traz a experiência do anterior (que vigorou de 2006 a 2010) e apresenta novidades para maior efetividade das medidas para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (ETP) no Brasil.

 

Com foco tanto na importância da informação sobre as causas e os nefastos impactos do Tráfico de Pessoas como na eficiência do trabalho em rede pelos órgãos e profissionais envolvidos no ETP, a Portaria Interministerial n. 634, que cria o II Plano, prevê para os próximos quatro anos ações que deem visibilidade ao tema, com a sensibilização e mobilização da sociedade, proporcionando um conhecimento mais sofisticado, atento e difuso acerca das situações de tráfico humano e das formas de enfrentamento.

 

Os objetivos do II PNETP vão da ampliação e aperfeiçoamento de órgãos envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas ao fomento, inclusive com capacitação dos profissionais, e fortalecimento da cooperação entre órgãos públicos, organizações da sociedade civil e organismos internacionais no Brasil e no exterior, passando pela produção e disseminação de informações sobre o tráfico de pessoas e as ações para seu enfrentamento.

 

Uma boa nova da Portaria é a criação do Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do II PNETP, que funcionará no âmbito do Ministério da Justiça. Dentre suas atribuições, além das esperadas para monitoramento e avaliação, é interessante a previsão de que o Grupo estabeleça metodologia de monitoramento e avaliação do II PNETP (inc. I). Esse dispositivo é um legado do aprendizado na execução da política pública de enfrentamento no Brasil e uma clara indicação do avanço no tratamento do tema no âmbito local.

 

O II PNETP prevê cinco linhas operativas:

 

1 - Aperfeiçoamento do marco regulatório para fortalecer o ETP;

 

2 - Integração e fortalecimento das políticas públicas, redes de atendimento, organizações para prestação de serviços necessários ao ETP;

 

3 - Capacitação para o enfrentamento ao tráfico de pessoas;

 

4 - Produção, gestão e disseminação de informação e conhecimento sobre tráfico de pessoas;

 

5 - Campanhas e mobilização para o ETP.  Cada linha operativa descreve uma série de atividades e metas para os próximos quatro anos.

 

O detalhamento das linhas operativas do II Plano é feito com a minuciosa descrição de atividades, as quais, de tão diversas e abrangentes, nos remetem às linhas típicas de uma política pública para implementar o Direito ao Desenvolvimento, o que indica a percepção de que o olhar para o futuro é um dos requisitos para o êxito do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Como o Direito ao Desenvolvimento, o ETP está pautado por princípios como: da inclusão; da accountability (prestação de contas/responsabilização); da participação; do fortalecimento (empowerment) de grupos vulneráveis (ou de vítimas); e da cooperação internacional. Todos estes princípios estão incorporados no II PNETP.

 

Da leitura das atividades previstas em cada linha operativa, nota-se que o tema foi tratado de forma holística, com a percepção de que o êxito do II Plano vem da integração entre órgãos e da capacitação de todos. Há uma visão da necessidade de se criar e consolidar uma cultura de Educação para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Muitas das atividades previstas em cada uma das linhas operativas do II PNETP iluminam as necessidades dos vulneráveis, dos excluídos e dos discriminados, possibilitando que as políticas públicas sejam pensadas e desenhadas, de modo participativo, para prevenir o tráfico humano e para acolher os que estão ou foram submetidos a esta situação.

 

Fica a sugestão de que os leitores conheçam o II Plano e as atividades previstas. Verão que há atividade para todo gosto e ramo de conhecimento. Quem sabe cada leitor encontre uma atividade para chamar de sua...

 

Voltando ao título do artigo: o governo brasileiro se importa. E a sociedade civil organizada, que também se importa, tem no II PNETP um farto aparato para exigir e monitorar essa política pública. Eu me importo.

 

 

Inês Virginia Prado Soares é doutora em Direito pela PUC/SP e Procuradora Regional da República.

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