Banalização da arbitrariedade

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Antonio Visconti
03/04/2008

Insiste-se novamente nas trágicas conseqüências da mentalidade subjacente na grande maioria dos ditos formadores de opinião, dentre os quais se põem, com justo realce, Magistrados, Promotores de Justiça, Delegados de Polícia e Oficiais da Polícia Militar. Consciente ou inconscientemente, têm o marginal na conta de sub-gente, portanto seres humanos de segunda, terceira ou quinta classe, para os quais não valem direitos e garantias individuais.

 

Direitos humanos são para humanos direitos, jogo de palavras de muito mau gosto, que trai essa mentalidade, fonte de abusos e de arbitrariedades. E estas infelizmente não sensibilizam a opinião pública, há muito trabalhada pela majoritária corrente de homens e mulheres "da lei e da ordem".

 

Num encontro de Promotores de Justiça da Infância e da Juventude ouvi de alguns ilustres membros do Ministério Público a expressão, dita jocosamente, "direitos dos manos"; naquele instante me ocorreu que não era um bom presságio. Pouco tempo depois, um desses Promotores de Justiça processou dezenas de jovens, ainda internos, por não haverem completado 21 anos e exigirem reeducação por meio da internação, que haviam denunciado maus tratos de servidores da ex-FEBEM e que depois se retrataram, dizendo terem se autolesionado - com o propósito de criar complicações para honestos funcionários que bem cumpriam seus deveres e por isso não gozavam da simpatia daqueles. Atribuiu-se-lhes o crime de denunciação caluniosa, ou seja, imputaram crime a pessoas que sabiam inocentes. Não terá ocorrido ao zeloso representante do Ministério Público por quais métodos se obteve essa retratação, no mínimo mui estranha.

 

Esse modo de pensar leva a uma série de funestas conseqüências. Se o réu é "bandido", tudo vale contra ele: tortura (crime pelo qual as condenações não chegam a poucas dezenas, conquanto se saiba que ainda campeia solta), maus tratos, negativa de assistência médica ou sua prestação burocrática e pouco eficaz, leniência com linchamentos, interceptação telefônica por tempo indefinido, desrespeito à inviolabilidade domiciliar, até o extermínio – e aí está a absolvição pelo Tribunal de Justiça do comandante do massacre do Carandiru, dando atestado de incompetência à MM. À Juíza que presidiu o julgamento (que reagiu pública e duramente), aos Promotores de Justiça que produziram a acusação e até ao tarimbado criminalista que cuidou da defesa do acusado.

 

Da mesma forma, sem maior cuidado, decreta-se a sua prisão temporária ou preventiva, nega-se a sua liberdade provisória em despachos defeituosamente motivados, é deixado indefinidamente preso; ladrõezinhos de pequeno tomo ficam meses encarcerados.

 

E quando o réu, geralmente homicida, é preso em estado distante, como sua vinda a São Paulo deverá se realizar por via aérea, o custo das passagens para ele e da escolta é muito elevado e ele não tem como custear o dispendioso trabalho de advogado - que precisa se deslocar até este estado para se inteirar do processo -, a conseqüência é ficar mofando por alguns anos no cárcere, até que um dia a verba destinada a esse transporte permita sua transferência.

 

E com os adolescentes infratores o rigor vai às raias do absurdo; a pretexto de que a internação deles visa protegê-los, recorre-se à analogia para determiná-la contra a letra da lei e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça; como a defesa deles é muitas vezes precária, não raro são levados para autênticas prisões disfarçadas, sem nenhuma base legal.

 

E depois, quando a pressão no caldeirão aumenta muito e serve de caldo de cultura para as ações de verdadeiro terror de líderes de facções criminosas tipo P.C.C., a opinião pública novamente se levanta contra os presos, prestigiando a retaliação policial, criando um infernal círculo vicioso, com a violência oficial e a dos marginais se alimentando reciprocamente, produzindo novas vítimas inocentes.

 

Esperar que temíveis facínoras se regenerem, ressocializando-se, ou seja, introjetando padrões éticos das pessoas honestas, é vã quimera. Para se pensar em reverter esse triste quadro, faz-se necessário que a parte sadia da sociedade se compenetre de que a repressão penal precisa sempre obedecer à lei; se e quando esta for excessivamente branda – e é –, que se trate de modificá-la e de adequá-la às necessidades de defesa social; o que não se justifica é ignorá-la sempre que beneficia a chamada sub-gente.

 

Assim somente crescerá a violência e com ela a intranqüilidade e a insegurança da população, sobretudo daquela que não tem como pagar a custosa segurança privada, uma das mais florescentes indústrias da atualidade.

 

Antonio Visconti é Procurador de Justiça, membro fundador do Movimento do Ministério Público Democrático – MPD.

 

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