Correio da Cidadania

Democracia: tudo vale a pena, se a alma não é pequena

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Os versos do poeta português Fernando Pessoa em seu poema "Mar Português", inspiram-me a falar sobre democracia. Atualmente, no Brasil, estamos atravessando um "mar revolto", um momento político e econômico bastante conturbado. Infelizmente, promovido por políticos de "almas apequenadas" e seus seguidores também de almas pequenas.

 

Falta-nos ainda, aos brasileiros, o pleno conhecimento de que a democracia é, em si, um grande valor. É preciso respeitar o voto de 54 milhões de eleitores, que elegeram a presidenta da República há quase um ano. A grande maioria do povo brasileiro desconhece o texto integral da Constituição Federal. Não me refiro apenas aos brasileiros que pertencem às classes de baixa renda, mas também àqueles que pertencem às classes abastadas. A maioria nada sabe sobre regras da política e da democracia. Pouco se aprende nas escolas sobre esses temas humanos tão importantes.

 

Todos deveríamos saber que a democracia moderna é o governo consentido pela maioria, porque há nela um ponto consensual: no regime democrático pressupõe-se que todo o poder emana do povo. A autoridade apenas se legitima se provier de raízes populares, advindas do sufrágio universal e do voto direto e secreto, com valor igual para todos, como bem diz o artigo 14 da Constituição Federal Brasileira. E, no meu entender, o voto é, ao mesmo tempo, um direito e um dever. Por isso, deve ser obrigatório como acertadamente o é entre nós.

 

Eu acredito que os cidadãos de um determinado território devem ter, além do direito de escolher seu candidato, o dever da responsabilidade eleitoral, de participar da política que dará rumo à nação. Não basta só pagar os impostos, é preciso ajudar na direção das políticas públicas que serão adotadas pelos representantes eleitos. Não é só no Brasil que é assim, há outros países desenvolvidos que mantém a obrigatoriedade do voto, como, por exemplo, Austrália e Bélgica.

 

Portanto, numa definição do regime político democrático, teremos de, no mínimo, admitir a vigência dessas duas idéias: a soberania do povo e a regra da maioria.

 

Voltando ao básico

 

No Estado Democrático de Direito, entende-se que o Direito é elaborado com base na vontade do povo. A sociedade e o governo devem ser democráticos. A República implica na divisão do poder. Na República Federativa do Brasil adotamos o sistema de governo presidencialista e a separação do Poder em 3 (três) partes: entre os que farão as leis (Poder Legislativo), os que irão executá-las administrando a coisa pública (Poder Executivo) e os que irão julgar e dirimir conflitos surgidos no seio da sociedade (Poder Judiciário). São poderes independentes, mas têm o compromisso da harmonia entre si. Um detalhe importantíssimo e, solenemente, ignorado por brasileiros: o Ministério da Justiça não faz parte do Poder Judiciário, mas sim do Poder Executivo (art. 84 e 87 da CF). Portanto, não tem competência para julgar.

 

No Estado Democrático de Direito será sempre o povo quem elegerá seus representantes/governantes, dentre eles os legisladores, que em seu nome escreverão as regras necessárias para o jogo democrático (as leis) bem como os necessários procedimentos (regulamentos) que deverão ser obedecidos por todos, sem exceções.

 

E, todos teremos de convir, que nos termos do artigo 17 da Constituição Federal não existe regime democrático representativo sem a existência de partidos políticos. Eles são a essência da política democrática. No mundo democrático é por intermédio deles (dos partidos) que se dá, ou ao menos deveria se dar, o debate político de qualidade.

 

Essas são, resumidamente, as regras de um regime democrático no seu aspecto formal.

Entretanto, no meu modo de pensar, sem a participação popular a democracia brasileira não se realizará completamente na vida cotidiana. Será apenas um projeto bonito e formal. Uma lei fundamental impressa em pergaminho e que poderá ser exposta na parede principal dos pátios, nada mais que isso. Não haverá concretude democrática.

 

A sociedade organizada sob um regime democrático proporciona a seus indivíduos mais do que o direito de escolher seus representantes políticos periodicamente. De acordo com o filósofo político italiano Norberto Bobbio, uma sociedade democrática promove a cidadania, e garante a todas as pessoas humanas o reconhecimento de seus direitos: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia”. Esse mesmo jurista também nos ensina que o regime democrático é uma forma de governo que se contrapõe a todas as formas de governo autocrático.

 

Portanto, enquanto a maioria do povo brasileiro não receber formação para participar dos partidos políticos, nossa democracia representativa não se desenvolverá, pois o poder político se restringirá àqueles poucos cidadãos(ãs) que se apropriam do espaço público. É preciso convencer os adultos e, principalmente, os jovens, a deixarem de lado os medos e preconceitos, e partirem para a conquista dos espaços internos dos partidos. Não basta só tomar as ruas. As manifestações públicas são importantes, mas é preciso ir além.

 

A despolitização dos eleitores - a meu ver, uma funesta herança cultural da ditadura empresarial-militar que durou 21 anos no país - é prejudicial ao nosso desenvolvimento. Só podemos considerar, de fato, cidadão(ã) aquela pessoa que exerce o seu direito-dever de participação política. É isso que significa cidadania. Seria muito importante que todos – ricos e pobres, letrados e iletrados – recebessem na escola ou fora dela – pelos meios de comunicação social, por exemplo - educação política de boa qualidade. Se todos tivéssemos noções básicas sobre o funcionamento do “mundo das leis ”, ou seja, do que vem a ser o Estado Democrático de Direito, acredito que já haveria uma boa melhora na qualidade de nossa vida social e da compreensão da política.

 

Temos de fazer valer a democracia participativa, que não se restringe ao plebiscito, referendo ou iniciativa popular de leis. Há de se destacar a importantíssima participação de toda população nos Conselhos Sociais temáticos e populares: da saúde, da educação, dos transportes, da segurança, da infância e juventude, da cultura, dos idosos, da moradia, do orçamento e dívida pública etc. Isto é indispensável. Esse tema polêmico é objeto do Decreto Presidencial nº 8243/2014:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Decreto/D8243.htm

 

Essa forma de exercer a política - dentro de conselhos setorizados - ainda não está implementada plenamente no país todo, exatamente pela falta de politização do povo. Ao lado disso, há um grande descaso por parte dos Poderes Executivo e Legislativo pelo bom funcionamento desses Conselhos, pois a maioria dos governantes e parlamentares acredita que esses Conselhos vieram para diminuir-lhes o poder político. Vê-se que a estupidez humana não tem limites.

 

O dinheiro

 

Na vida real, também é muito importante observar-se o peso descomunal exercido pelo abuso do poder econômico na política partidária. No jogo político esse abuso concentra-se à direita. Portanto, cabe aos partidos políticos de esquerda o dever de denunciar essa prática nociva numa democracia. Há uma grande parcela dos cidadãos (ãs) pertencentes às classes abastadas que odeiam a democracia. Detestam a igualdade social. Isso ocorre em todo o mundo. É um sentimento comum por parte daqueles que detém o poder econômico. Aqui no Brasil esses cidadãos(ãs), por exemplo, detestam o programa social Bolsa Família, que faz transferência de renda. O poder do dinheiro solapa o regime democrático.

 

Felizmente, para nós os brasileiros, por decisão judicial recente do Supremo Tribunal Federal, juntamo-nos às dezenas de países que proíbem o financiamento de campanhas políticas por empresas privadas. Ficamos ao lado de Portugal. Deixamos de imitar os EUA nesse quesito. A democracia estadunidense foi sequestrada pelo poder do dinheiro. Se o voto pertence aos cidadãos, uma empresa privada não pode vir a contribuir para o desequilíbrio do poder político de um povo.

 

Essa luta contra o poder do dinheiro ainda não foi totalmente vitoriosa, em que pese a presidenta da República Dilma Rousseff ter acompanhado a decisão judicial e, coerentemente, vetado o projeto de lei já aprovado que previa a continuação dessa participação empresarial em campanhas políticas.

 

Acredito que, por detrás das tentativas políticas de provocar o impeachment (impedimento, perda do cargo) da presidenta Dilma, esteja esse interesse de retorno do dinheiro para campanhas que, todavia, está sendo camuflado pela mídia. Os meios de comunicação social tem feito um alarde despropositado apenas sobre a operação Lava-Jato (corrupção na Petrobrás), porque há também membros do PT nela envolvidos. São poucas as informações de qualidade que a radiodifusão propaga. Interesses econômicos e ideológicos dos concessionários dos meios eletrônicos de comunicação social são omitidos. Há muita manipulação de dados. Se o eleitor nada souber sobre distintos interesses de classes sociais, será enganado. Comprará gato por lebre.

 

O processo criminal federal da "Lava-Jato" tem produzido como efeito colateral o desemprego em massa na área da construção civil brasileira. Esse fato, conjugado com a grave crise econômica mundial que se alastra e também nos atinge, provoca ainda mais desemprego. Esses fatos têm sido escamoteados. Para a mídia hegemônica tudo é culpa da presidenta Dilma e do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, nossa presidenta é pessoa honesta, não cometeu crime algum e sequer está sob investigação criminal. É preciso respeito ao regime democrático, respeito aos 54 milhões de votos legítimos que ela recebeu.

 

Precisamos saber mais

 

Mas o que sabem os eleitores sobre o artigo 85 da Constituição Federal que prevê crimes de responsabilidade da presidência da República? Penso que a maioria nada sabe ou pouco sabe. No entanto é preciso saber e entender. A quem se deve atribuir a obrigação de ensinar essas regras constitucionais para crianças, jovens e adultos brasileiros? Silêncio total.

 

A maioria dos nossos professores também desconhece os termos da Constituição de seu próprio país, pois nunca receberam essa formação. Muitas escolas públicas, privadas e filantrópicas se omitem. Contudo, a polêmica maior no campo educacional brasileiro hoje é sobre o ensino religioso: se deve ser de uma determinada religião ou sobre todas as religiões. É inacreditável!

 

Sim, a corrupção pública e privada é um grande problema no Brasil. Como também são nossa dívida pública e a sonegação fiscal. Mas, não devemos nos iludir: o maior problema do Brasil é a obscena e injusta desigualdade social. Essa iniquidade dá margem ao aumento da criminalidade. A violência urbana e rural provocada não só por delinquentes comuns, pela violência doméstica, por linchamentos, mas também por abusos graves de policiais mal formados gerou 58 mil assassinatos no último ano. Nosso quadro social assemelha-se ao de uma guerra civil. Para além de tudo isso, ainda temos o racismo contra pessoas de pele negra e contra as pessoas indígenas brasileiras. Enfim, não está nada fácil conquistarmos uma democracia de fato e de direito.

 

Os políticos de "almas apequenadas" e seus seguidores estão produzindo um dramalhão novelesco, e proporcionando uma boa audiência para a mídia. E, com isso, gerando um clima de ódio e desesperança que se espalha por todo o país. Se esse dramalhão desprezível não se encerrar rapidamente, todos nós seremos prejudicados. Quando a onda de ódio se alastra, torna-se difícil controlá-la. E a relativa paz social que ainda nos resta, se dissolverá por completo.

 

Neste momento grave, a luta política democrática concentra-se na Câmara Federal. Como nos diz o poeta Caetano, "é preciso estar atento e forte..."

 

Inês do Amaral Buschel é promotora de justiça paulista, aposentada, e associada-fundadora do MPD - Movimento do Ministério Público Democrático.

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