Correio da Cidadania

“Apesar do discurso, a FIFA continua a ser ‘pagou, levou’”

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Começou a 21ª primeira Copa do Mundo futebol, esporte mais popular do mundo e que vive seu ápice de mercantilização, tanto pelo tamanho que a indústria esportiva atingiu ao longo dos anos como pela atração de interesses políticos e econômicos do mais alto calibre. Sobre isso, e também para fazer uma análise do futebol brasileiro pós-2014, conversamos com o historiador Marcos Alvito, que em 2010 fundou a Associação Nacional dos Torcedores, época em que se iniciaram os alertas contra a chamada elitização do futebol.

“Em termos do futebol brasileiro propriamente dito, 2014 operou uma mudança em termos da conscientização de uma gestão mais profissional da seleção
A Copa de 2014 trouxe um novo problema, seríssimo: a questão dos estádios. A ‘arenização’ destruiu a topofilia, o amor dos torcedores e torcedoras a seus templos, locais de memória, ligados à própria vida de cada um. Além disso, a política de aumento exagerado dos preços”, sintetizou.

Sobre a FIFA, varrida por uma histórica operação do FBI que rastreou operações financeiras ilegais em território dos Estados Unidos – aliás, eleitos sedes da Copa de 2026 – Alvito defende que não mudou seu rumo mesmo após a troca de diversos membros de sua alta cúpula. Dessa forma, como demonstra a manutenção da petromonarquia do Catar como sede de 2022, continua se resumindo ao “pagou, levou”.

“A FIFA tenta se reabilitar em relação à opinião pública mundial, vendendo a ideia de que foi tudo obra de homens maus e que agora existe uma nova FIFA. Só que as prisões e o combate à estrutura corrupta não são capazes de transformar nada. Tudo teria que partir dos clubes, para alcançar as federações e por última a FIFA. Um movimento de baixo para cima. Que está longe de acontecer”, afirmou.

A entrevista completa com Marcos Alvito pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Começando esta entrevista por onde a Copa do Mundo parou, no Brasil, como enxerga o futebol nacional quatro anos após a derrota de 7 a 1 para a Alemanha e um forte processo de crise e desencanto social que, talvez, tenha se fortalecido justamente a partir desse megaevento esportivo?

Marcos Alvito: A Copa de 2014 foi um tiro no pé para o futebol brasileiro. O 7 a 1 foi o de menos, embora possa ser tomado como um símbolo do fracasso total. De uma vez por todas, caiu por terra a ideia do futebol como um mundo à parte. Para a população como um todo, falar de futebol agora também é falar de política, de corrupção, de incompetência, de interesses econômicos. Hoje temos um ex-governador, Sérgio Cabral, que em boa parte foi investigado, processado e preso por conta das negociatas envolvendo o Maracanã. Isso se reflete no verdadeiro desinteresse pela Copa da Rússia e pela nossa seleção por parte de mais da metade da população segundo pesquisa da Folha.

Contraste-se isso com o furor despertado pelo álbum de figurinhas, ícone dessa relação infantil e idealizada com o futebol e seus ídolos. O desejo pelo futebol e até a nostalgia ainda são muito fortes.

Em termos do futebol brasileiro propriamente dito, 2014 operou uma mudança em termos da conscientização de uma gestão mais profissional da seleção, o que foi sem dúvida efetuado por Tite e sua enorme equipe. Tite e seu paternalismo light e competente. Por outro lado, o futebol brasileiro continua a ser um corpo sem cabeça. A CBF é apenas uma parasita vendedora de direitos televisivos do Brasileirão e da galinha dos ovos de ouro: a seleção.

A Copa de 2014 trouxe um novo problema, seríssimo: a questão dos estádios. A “arenização” destruiu a topofilia, o amor dos torcedores e torcedoras a seus templos, locais de memória, ligados à própria vida de cada um. Além disso, a política de aumento exagerado dos preços, que em termos relativos são cinco vezes mais caros do que na Alemanha, impediu a presença do povão, que sempre foi a alma dos estádios.

Ainda poderia ficar horas aqui, falando dos problemas de calendário, da questão dos campeonatos estaduais, da exploração do trabalho infantil nas categorias de base, da pedofilia... Fora de campo é muito mais do que um 7 a 1.

Correio da Cidadania: O que os Jogos Olímpicos de 2016 acrescentaram à análise?

Marcos Alvito: Mais do mesmo: votos comprados para a escolha de sede, obras faraônicas permitindo corrupção da grossa e, por fim, mas não menos importante: direcionamento da localização dos aparelhos olímpicos para zonas já “nobres” da cidade, ajudando a recuperar o preço de imóveis na Barra da Tijuca. Isso foi admitido em O Globo pelo presidente de uma construtora (João Fortes). Nem mesmo considerando a possibilidade de usar a Olimpíada para estimular regiões economicamente devastadas e com graves problemas sociais. Mais uma oportunidade de ouro perdida.

Correio da Cidadania: É claro que após a referida derrota até aqueles que passaram os anos anteriores em postura acrítica começaram a falar em reflexões, reformas e aprendizados a partir de grandes exemplos internacionais, em especial a própria Alemanha. Você acredita que de fato houve mudança de mentalidade?

Marcos Alvito: Creio que houve uma certa conscientização de que o futebol hoje é mais “científico”, exigindo um trabalho interdisciplinar. A seleção do Tite tem quatro analistas de desempenho, tudo é filmado, registrado, contabilizado. Só que a seleção é o resultado, a base é a estrutura do futebol brasileiro, que não mudou nem um pouco. Nem vai mudar enquanto a CBF continuar sendo o que é.

Correio da Cidadania: O que dizer da CBF pós-Ricardo Teixeira, artífice da conquista do direito de o Brasil ser sede, em 2007?

Marcos Alvito: Quando participava da ANT (Associação Nacional dos Torcedores, criada em 2010), fizemos uma campanha pela queda de Ricardo Teixeira. Fui contra, embora fosse uma bandeira muito popular. Achava que pensar em termos de eleger uma pessoa como a responsável era pobre, não explicava nada. Ele já caiu há anos e tudo continua igual, porque a estrutura é a mesma.

Correio da Cidadania: E da FIFA após a saída de Blatter e da célebre operação do FBI que levou à troca de diversos membros da cúpula do futebol, em especial sul-americano?

Marcos Alvito: Por um lado, a FIFA tenta se reabilitar em relação à opinião pública mundial, vendendo a ideia de que foi tudo obra de homens maus e que agora existe uma nova FIFA. Só que as prisões e o combate à estrutura corrupta não são capazes de transformar nada. Tudo teria que partir dos clubes, para alcançar as federações e por última a FIFA. Um movimento de baixo para cima. Que está longe de acontecer. E se analisarmos a lógica das ações e projetos da FIFA, vemos que a entidade continua a mesma.

Correio da Cidadania: Chegando a 2018, como enxerga essa Copa da Rússia, considerando também sua sucessora, o Catar? O que essas sedes representam do futebol atual?

Marcos Alvito: Representam a manutenção da estrutura carcomida da escolha das sedes. Representam o total desprezo por parte da FIFA a outras considerações que não o seu lucro. A Copa é um circo bem caro e a FIFA topa tudo por dinheiro. A escolha do Catar deveria ser anulada, devido à enormidade das denúncias de corrupção. Em todos os sentidos, não há clima para a realização da Copa lá. Apesar do discurso, a FIFA continua a ser “pagou, levou”.

Correio da Cidadania: Veremos estádios (ou arenas) cujos conceitos e arquiteturas remetem aos recém-construídos no Brasil, dentre tantas outras praças esportivas de pouca idade mundo afora. O que comenta dessa padronização?

Marcos Alvito: Há vários anos que defendo a hipótese de que a FIFA está de olho no mercado norte-americano, onde aliás será a maior parte da Copa de 2026 (escolha feita na véspera de abertura da Copa da Rússia), esse monstrengo com 48 equipes. Futebol americano e basquete têm campos padronizados. O campo menor permite a ocorrência de mais eventos, já que o futebol é hoje um show televisivo. Gols e jogadas bonitas são eventos, mas uma disputa de bola, um pontapé, uma cotovelada, também são. Os jogadores são mais rápidos e correm mais.

A FIFA diminui o campo? É uma lógica contra a técnica, meramente a favor do espetáculo assistido via vídeo por bilhões. O árbitro de vídeo (na verdade uma equipe de vídeo) é outra medida na direção da americanização. Se antes o futebol era o reino do acaso e da falta de lógica, em que nem mesmo a hora em que terminava o jogo poderia ser definida, agora já se pensa em adotar um cronômetro nos últimos minutos do jogo. A aposta da FIFA é a seguinte: quem já gosta do jogo vai continuar gostando, mas quem sabe os americanos passam a amar o esporte bretão quando ele estiver mais parecido com os esportes que eles conhecem?

Correio da Cidadania: É possível imaginar o que será do futebol na próxima década?

Marcos Alvito: Há uma nova geração, dos games, do celular, do mundo virtual. Acho que quando ela crescer o futebol, embora vá continuar muito importante, vai ser cada vez mais apenas uma das formas possíveis de entretenimento. Quem planta, colhe.

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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