Mito e cinema IV: A natureza-mulher e o dever do homem

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Cassiano Terra Rodrigues
23/10/2008

 

Um diálogo:

 

– Você nunca sente falta de mulher?

 

– Mulher pra noite inteira? Ahahahahah... Eu peguei uma indiazinha pra morar comigo uma vez. A pior vagabunda que se vendia por qualquer ninharia... No fim, troquei-a por um rifle Hawkin! Os seios de uma mulher são a rocha mais dura que Deus já colocou sobre a terra, e eu não consigo achar sinal algum entre eles!

 

Tirado do belíssimo filme de Sydney Pollack, ‘Mais forte que a vingança’ (EUA, 1972; o título original é Jeremiah Johnson, nome da personagem principal). No filme, Jeremiah Johnson (Robert Redford, num de seus melhores papéis) sobe a montanha, abandona a civilização em busca de uma relação genuína com a vida em contato com a natureza. Lá encontra "Bear Claw" (pata de urso), Chris Lapp, há tempos adepto do anacoretismo, de quem obtém a resposta acima.

 

Notem-se os termos da relação entre mulher e natureza – mistério, traição... E também a relação com o rifle: mulheres, claro! Mas sem um bom rifle é impossível sobreviver. O bordão de "Bear Claw" no filme é: "You can’t cheat the mountain, pilgrim, the mountain’s got its own ways (Você não tapeia a montanha, peregrino, a montanha tem os caminhos dela)", seguido de um silêncio...

 

O indivíduo em contato direto com a natureza – eis a idéia mais cara ao faroeste americano. Na verdade, essa é uma idéia que remonta ao século XIX, aparecendo fortemente nos escritos dos autores "transcendentalistas": Henry David Thoureau, Ralph Waldo Emerson, Margaret Fuller, George Ripley, Elizabeth Peabody, dentre outros.

 

Reagindo ao intelectualismo e ao racionalismo em voga na época (principalmente em Harvard), os transcendentalistas viam no encontro com a natureza a possibilidade de romper os códigos de uma dominação religiosa puritana e autoritária. Thoureau diz que busca na natureza "uma vida de simplicidade, independência, magnanimidade e confiança", longe das convenções civilizatórias e aprisionadoras.

 

E talvez não haja mito mais reatualizado do que o do bom selvagem... Ainda que não com esse nome, a idéia é antiga: na sua condição natural, o ser humano é livre como em sociedade jamais foi ou será. Somente ali, na solidão, sob as leis únicas de Deus e da natureza, é possível ao indivíduo humano o reencontro consigo mesmo – e, por intermédio desse reencontro, o encontro com a verdade e a essência das coisas. A verdadeira natureza humana só se nos revela quando abandonamos a civilização corrompida e entramos em contato com a natureza – aí e então tudo se esclarece, compreendemos finalmente o mistério da vida.

 

Mas esse é só um aspecto da questão. A natureza também é freqüentemente associada à idéia de uma feminilidade misteriosa, uma mulher ao mesmo tempo sedutora, virgem, difícil de se penetrar – a rocha mais dura sobre a terra! Para domá-la, é preciso conhecê-la – quem o fará? O novo Adão: o peregrino desbravador, o colono bravio que submete as forças selvagens pela sua diligência e inteligência. Essa imagem da natureza liga-se à ideologia do destino manifesto: ao contrário das revoluções na Europa, que almejavam transformar o velho homem para uma nova realidade social, as revoluções nos EUA (políticas e espirituais) almejam preparar o novo homem americano para enfrentar uma nova realidade. O mito da liberdade natural do indivíduo se entrelaça, dessa forma, com os motivos edênicos na visão da América – expandir as fronteiras, reconquistar o paraíso, afirmar o valor humano – de certo homem sobre tudo mais.

 

Mas não é só a montanha que não se pode tapear. Fugir da civilização, como Johnson aprenderá amargamente, é impossível. Onde quer que te escondas, ela te caça. Assunto para a próxima coluna.

 

Cordiais saudações.

 

* * *

 

EVENTO: Todo mundo já sabe, mas não custa: 32ª Mostra de Cinema. Exibição de Berlin Alexanderplatz, de Rainer Werner Fassbinder, na íntegra. Ok, é uma série feita para a TV, mas e daí? Informações: http://www.mostra.org/32/home.php?language=pt

 

EVENTO 2: Outro evento cinematográfico nem tão alardeado quanto a Mostra está pra começar em São Paulo: a exposição Cinema Sim − Narrativas e Projeções, que explora a presença da linguagem cinematográfica nas artes visuais. De 29/10 a 21/12, no Itaú Cultural. Informações: http://www.itaucultural.org.br/cinemasim

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de Filosofia na PUC-SP e acha que, ultimamente, é a natureza que foge das pessoas...

 

Contato:Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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