Correio da Cidadania

Criação de Gente

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Por uma destas viradas da vida, passei, há cerca de dois anos, a trabalhar em algo que nunca tinha imaginado fazer: escrever artigos sobre temas ligados à criação animal e ao processamento de carnes. Pela natureza do trabalho, comecei a freqüentar eventos nesta área, como feiras ou encontros científicos. Neles, tomei contato com um mundo de máquinas, equipamentos e processos que nem de longe imaginava que poderiam existir. Mas, além disso, também passei a perceber o enorme cuidado (de nutrição, saúde e alguns parâmetros de bem-estar) devotado à criação de alguns animais, tais como aves e suínos, em cuja produção e comércio o Brasil possui posição mundial de destaque. O lado negativo da moeda é que a criação animal em confinamento gera diversos problemas ambientais.

 

Pois bem, vendo todos aqueles cuidados e refletindo sobre a triste realidade sócio-econômica de grande parcela da população do nosso país, veio-me à mente uma idéia totalmente absurda (que não se pense em colocá-la em prática), mas que tem o valor de desnudar algumas contradições existentes em nossa sociedade atual. Aberrante que seja (aliás, justamente por isso), e pela náusea e choque que naturalmente provoca, ela pode ajudar a aumentar a consciência sobre estas mesmas incoerências. A intenção última é que o absurdo nos ajude a refletir sobre as nossas próprias atitudes frente a estas contradições e, quem sabe, modificar o nosso comportamento. A idéia: criação confinada de gente. Vejamos.

 

A superfície agrícola e a quantidade de água necessária para a produção de um quilo de carne são muito maiores que para a produção de um quilo de qualquer vegetal. Isto porque boa parte da energia presente na ração vegetal que é dada aos animais é dissipada pelo seu metabolismo. Basta lembrar que ingerimos, em média, de 1 a 2 quilos de comida por dia, mas, mesmo em fase de crescimento, nosso peso não aumenta neste valor. Por isto que, para produzir um quilo de carne gastam-se alguns quilos de vegetais e, portanto, água, que, além disso, é necessária em grandes quantidades para outros aspectos da criação animal e do processamento da carne.

 

Pois bem, alimentando-se as pessoas com os mesmos ingredientes das rações estaríamos economizando uma grande quantidade de terras agricultáveis e de água, ambos recursos escassos, e resolvendo o problema da fome.

 

Mas, pensará o leitor, os animais confinados recebem alimentação baseada principalmente em soja e milho, altamente calóricos, além de ser uma dieta sem graça e repetitiva, principalmente se aplicada por longo tempo. A zootecnia tem as soluções, no entanto. Como os animais às vezes também podem recusar-se a comer a quantidade de alimento necessária à sua engorda, já há no mercado substâncias que aumentam a palatabilidade da ração (sua receptividade por quem deve consumi-la). Isto para estimular os porquinhos e franguinhos a comerem. O mesmo poderia ser utilizado conosco, adicionando diversos sabores e aromas à ração, apenas com uma maior diversidade de sabores para contentar nosso gosto pela variedade. Vide, por exemplo, os salgadinhos de milho, tão populares em nossa sociedade.

 

Quanto ao alto índice calórico, também não há com o que se preocupar. As rações são cuidadosamente formuladas para fornecerem as quantidades exatas que os animais precisam tanto de energia quanto de proteínas. E mais: os pormenores de cálculo vão até à composição da dieta em termos da quantidade exata de cada aminoácido que os animais precisam, complementando com aminoácidos sintéticos quando necessário. E elas já contêm naturalmente uma grande quantidade de fibras! As contas também incluem minerais necessários. Portanto, em termos nutricionais, a dieta seria ideal. Assim, resolveríamos diversos problemas de saúde pública, como (ainda) a desnutrição de parte da nossa população, a obesidade (que aumenta rapidamente em todas as camadas) ou deficiências nutricionais específicas de proteínas ou vitaminas. Além disso, como a ração é dada em quantidade suficiente e igual para todos e como os recipientes seriam feitos de forma a evitar disputas (como ocorre na criação animal), não haveria brigas, nem mesmo crimes por comida.

 

Em termos de saúde física, os ganhos com a criação de gente seriam diversos. Os animais de criação confinados modernamente recebem diversas vacinas e são monitorados constantemente. Além disso, a entrada de insetos, roedores e pássaros nas granjas é controlada ao máximo, para evitar a transmissão de doenças. Até o acesso de pessoas e veículos é restrito e feito com extremos cuidados nos melhores estabelecimentos, com o intuito de evitar contaminações externas. A preocupação com a água de beber dos animais também existe, e recomenda-se tratá-la adequadamente, o que ajuda a prevenir diversas doenças. Porém, para muitos brasileiros, água tratada ainda é um luxo. Bem, com tudo isso, percebe-se que estes animais recebem maiores cuidados de saúde que boa parte da população brasileira. Mais um ponto a favor da criação confinada de gente.

 

Recentemente, a criação animal em alguns locais viu-se às voltas com o problema do banimento do uso de antibióticos promotores de crescimento. Explico. Tradicionalmente, os criadores ministravam antibióticos aos animais, pois isto acelerava seu crescimento (por razões não completamente esclarecidas). Tal prática foi banida em diversos países, e começou-se a buscar alternativas. Entre elas, o emprego de fitoquímicos com ação bactericida, enzimas digestivas e probióticos. Este último caso nada mais é do que a administração de bactérias benéficas ao organismo, como as presentes no Yakult® ou em diversos produtos da linha dos iogurtes. Olha só que chique! Poderíamos ainda ter alguns pequenos luxos, ou ter a nossa digestão facilitada.

 

Em termos de bem-estar, continuaríamos marcando gols. Após perceber que temperaturas muito quentes ou muito frias interferem na produtividade, os recintos passaram a ter sua temperatura controlada, seja por meio de aquecedores, seja por meio de equipamentos que resfriam o ar (enormes ventiladores, exaustores ou nebulizadores). Assim, procura-se ao máximo garantir o conforto térmico dos animais. Para quem vive nas ruas ou em condições precárias nas favelas e alagados, estas condições não estariam nada mal - desde que, é claro, podendo sair para passear de vez em quando.

 

Em termos de geração e tratamento de dejetos, os proveitos continuam acumulando-se. Com o aumento da consciência ambiental global (pequeno, é verdade) houve um aumento da pressão (pequeno, é verdade) sobre algumas atividades poluidoras, dentre elas a criação animal. Porém, com a invenção dos mecanismos de créditos de carbono, a situação começou a melhorar. Cresceu o interesse no tratamento adequado de resíduos, de forma a gerarem menos gases causadores do efeito estufa. Isto porque a diferença de emissão entre os métodos antigos e novos pode ser comercializada na forma dos tais créditos.

 

Muito bem, o primeiro ganho com a criação de gente seria que os dejetos seriam produzidos uma vez só, apenas por nós, ao invés de duas (pelos animais e depois por nós). Em segundo lugar, poderia haver tratamento para os dejetos humanos. Não esquecendo que a quase totalidade do esgoto brasileiro não é tratado adequadamente e não se têm feito os esforços necessários para mudar este quadro. Inúmeros locais não contam nem mesmo com redes de coleta. Por fim, como os humanos são animais conscientes, seria fácil termos locais separados para as nossas necessidades fisiológicas (leia-se banheiros). Isto facilita a criação, pois, com os animais de corte, isto não é possível. A criação de gente é sem dúvida a solução do futuro.

 

Além do absurdo da idéia, à qual obviamente não me subscrevo, ressalte-se que algumas (ou todas) as melhorias na criação animal decorrem basicamente de dois fatores: a busca incessante do lucro e a pressão de compradores exigentes. Nenhum deles existiria na hipotética criação de gente, a menos que se começasse a inventar requintes nazistas cada vez maiores (fornecimento de gente para diversas funções, controle da reprodução,etc.).

 

 

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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