Correio da Cidadania

Cerrado: torto, mas não errado

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“Nem tudo que é torto é errado.

Veja as pernas do Garrincha

e as árvores do cerrado”

(início de poema do escritor de origem cuiabana Nicolas Behr, que resume muito bem e de forma muito criativa os sentimentos que deveríamos ter em relação a este belo ecossistema)

 

Na nossa coluna escrevemos muito sobre a floresta amazônica, o Pantanal e sobre grandes temas ambientais, mas quase nenhuma linha sobre o Cerrado. Porém, não estamos sós nessa negligência. Isto de certa forma reflete o que ocorre na sociedade em geral, onde o bioma é considerado como de “segunda categoria”. Por isso, a destruição resultante da pecuária e da agricultura parece sempre incomodar bem mais quando atinge áreas da Amazônia, do que quando destrói o Cerrado, menos exuberante que a floresta tropical. Então, aproveitei que na terça-feira próxima, dia 11 de setembro, comemora-se o dia do Cerrado, para começar a sanar esta falha.

 

O Cerrado abrange boa parte do Brasil Central, além de ocorrer como manchas tanto dentro de áreas da floresta amazônica quanto nos domínios da Mata Atlântica em São Paulo e no Paraná. É o segundo bioma brasileiro em extensão e ocupava originalmente cerca de 25% do território nacional. A sua paisagem caracteriza-se por uma gama bem ampla de feições, que variam desde campos limpos, compostos quase exclusivamente de gramíneas (um grande “pasto” nativo), até o cerradão, de porte e estrutura semelhantes a uma floresta. Entre estes extremos há inúmeros graus intermediários, como o campo sujo, campo cerrado e cerrado sensu strictu. Este último, que é a sua forma mais típica, apresenta-se como um campo de gramíneas e plantas herbáceas, entremeados de arbustos e árvores baixas. Estes geralmente possuem uma forma bastante característica, com troncos retorcidos, de casca grossa, e com folhas duras e espessas.

 

Junto com a Mata Atlântica, o Cerrado é o outro bioma brasileiro que integra a lista dos ‘Hotspots’ (pontos quentes) de biodiversidade global, de acordo com um critério que seleciona biomas com pelo menos 1.500 espécies de plantas endêmicas - que só existem ali e em nenhuma outra parte - e que já perderam 75% ou mais de sua vegetação original.

 

O Cerrado quase sempre foi olhado com certo desprezo. A razão provavelmente está, além do já citado visual menos exuberante de sua vegetação, no aspecto algo ressequido que assume nas longas estações secas anualmente enfrentadas pelo Brasil Central. O seu solo também foi considerado pobre e pouco apropriado para a agricultura durante a maior parte de nossa história. A atividade predominante era a pecuária extensiva de gado. Esta, da forma como era praticada, preservava, bem ou mal, parte da biodiversidade local.

 

Mas as coisas foram mudando. Primeiro, desenvolveram-se variedades de soja adaptadas ao solo e ao clima do Brasil Central. Depois, o país foi aos poucos entrando na era do agribusiness. Com tudo isso, o Cerrado sofreu grandes golpes. O “correntão” (forma de desmatamento bastante destrutiva na qual uma corrente bem grossa é amarrada a dois fortes tratores que, ao se deslocarem, arrastam a corrente e tudo o mais que estiver em seu caminho) correu solto. E, em pouco tempo, as suas paisagens maravilhosamente heterogêneas cederam espaço a enormes e monótonas monoculturas de soja. O milho, o arroz e o feijão vieram logo atrás (e a cana está rondando por aí). Em diversos locais, a pecuária “modernizou-se”, e foram introduzidas variedades de gramas exóticas (não nativas do país). Dentre elas, a famigerada Brachiaria africana, que se adaptou muito bem às condições locais. Se por um lado a gramínea favoreceu muito a nossa pecuária, por outro passou a reproduzir-se livremente e a competir com espécies nativas, até mesmo dentro de parques e áreas protegidas. Nessas áreas, a gramínea africana, além de sufocar a vegetação nativa, obstrui o deslocamento da fauna nativa e facilita a propagação de incêndios.

 

Outra praga ambiental que acomete o cerrado é a produção de carvão. Quem já andou pelo Brasil Central certamente viu os fornos de carvoeiros em algum local. Soltando fumaça, numa paisagem desolada e com pilhas de toras e pedaços de árvores nativas aguardando sua vez de queimar para a produção de carvão vegetal, são uma triste metáfora do nosso modelo de desenvolvimento. Parte considerável deste carvão serve para abastecer siderúrgicas, principalmente em Minas Gerais. É lamentável que ainda recorram a esta tecnologia tosca e primitiva, tão ao gosto do empresariado tupiniquim, e não possuam políticas de emprego de carvão originado de silvicultura (ou, melhor ainda, de coquinhos de palmeiras, que contribuiriam para a própria recuperação do Cerrado).

 

Para completar o “kit destruição”, a construção de Brasília, nos anos 1960, e de diversas estradas impulsionou a devastação de grandes parcelas do cerrado. Por essas e outras que, de acordo com dados da EMBRAPA, o bioma conta com apenas 5% de sua extensão original com áreas relativamente intactas e superiores a 2000 hectares (mínimo necessário para uma proteção razoavelmente eficaz).

 

Mas, tudo bem, pensará o leitor. O ecossistema é feio mesmo, não serve pra nada e tem mais é que ser aproveitado para produzir comida. Nada mais enganoso. Em primeiro lugar, o potencial turístico do cerrado preservado é enorme. Primeiro, por sua fauna característica, muito mais visível nos moldes dos safáris africanos que a fauna amazônica, que pode ser apreciada por muitas pessoas com apreço pelo ecoturismo. Segundo, porque dentro do bioma encontramos algumas paisagens exuberantes, principalmente onde há água, com chapadas e rios cristalinos de corredeiras e cachoeiras, formações geológicas exóticas e centenas de flores tão diferentes quanto belas. Parque Nacional das Emas, Chapada dos Guimarães, Jalapão, Chapada dos Veadeiros... a lista é imensa e a descrição, mesmo que resumida, das belezas dessas áreas, tomaria várias páginas.

 

Não está tudo bem com a destruição do Cerrado, em segundo lugar, porque toda esta destruição na verdade pouco traz de concreto ao país. As monoculturas da soja são em boa parte mecanizadas, empregam pouca gente e uma parcela considerável é voltada à exportação. E a grande maioria do processamento, esmagamento (para extração de óleo) e exportação são feitos por empresas estrangeiras, que remetem lucros ao exterior. E, de mais a mais, a quantidade de emprego e renda produzidos pela exportação de gêneros alimentícios in natura ou pouco processados é muito menor quando comparada a outros setores. Acho que não compensa toda a destruição que causa. Serve só para os sucessivos governos anunciarem garbosamente nos jornais televisivos noturnos “novos recordes na safra de grãos”.

 

 

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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