A Terra Indígena Manchineri do Guanabara no 'Governo da Floresta' (2): Réplica e tréplica

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Marcelo Piedrafita e Rodolfo Salm
09/08/2007

 

 

Prezado Rodolfo Salm,

 

Li com atenção seu texto "A Terra Indígena Manchineri do Guanabara no "Governo da Floresta" divulgado no Jornal da Cidadania a 26 de julho último. Percebo sua pertinência como estratégia para chamar a atenção para a longa demora no avanço da regularização administrativa da Terra Indígena (TI) Manchineri do Seringal Guanabara, cuja identificação foi iniciada pelo Grupo Técnico (GT) constituído pela Portaria s/n, de 14/11/2003.

 

Queria fazer alguns comentários:

 

No relatório "Uma agenda para o avanço dos processos de regularização das terras indígenas no Estado do Acre (GT Fundiário)", que, em abril de 2006, elaboramos para o governo do Acre (depois transformado em uma série de seis artigos publicados em nossa coluna "Papo de Índio", no jornal Página 20), visando ressaltar a necessidade de agendas e ações articuladas entre os governos federal e estadual para fazer avançar a regularização de um conjunto de terras indígenas no Acre, em momento algum, Terri Aquino e eu colocamos qualquer comentário desfavorável à criação da TI Manchineri do Seringal Guanabara. Pelo contrário, a urgente retomada do processo de regularização dessa terra foi uma das medidas por nós ressaltada em nosso diagnóstico e na agenda proposta. Em nenhum momento, ainda, defendemos qualquer redução da proposta de 213.254 hectares, apresentada pelo GT, do qual você, como biólogo, fez parte, na condição de "ambientalista", contratado por meio de consultoria do PNUD.

 

Conforme deveria ser de seu conhecimento a versão preliminar do relatório de identificação e delimitação foi encaminhada à CGID/DAF em junho de 2004. Em abril seguinte, por meio do "Parecer nº 018/CDA/CGID/05", elaborado pelo então Coordenador do CDA/CGID, o já finado Antônio Pereira Neto, o relatório foi devolvido ao antropólogo-coordenador, Raimundo Tavares Leão, para ser reescrito, para que a delimitação proposta fosse devidamente justificada à luz da legislação indigenista vigente (o Decreto 1.775/96 e a Portaria 14/96). Erros insanáveis do relatório inviabilizaram, àquela época, sua aprovação pela CDA/CGID e, portanto, sua aprovação pela Presidência da Funai e a publicação de seu resumo nos Diários Oficiais da União e do Estado do Acre e na sede da Prefeitura do Município de Sena Madureira, conforme estabelece o rito demarcatório das terras indígenas normatizado pelo referido Decreto.

 

O fato de um profissional ter dissertação de mestrado aprovada por um curso de pós-graduação o legitima a exercer atividade de coordenação de um GT constituído pela Funai para a identificação e delimitação de uma terra indígena. Mas, não necessariamente o credencia a exercer as atividades de antropólogo-coordenador ou a escrever um relatório bem fundamentado. No caso da TI Manchienri, isto ficou mais uma provado pela criteriosa análise feita pela coordenador da CDA/CGID. Era a intenção inicial da CDA, ao que me consta, que o mesmo profissional reelaborasse o relatório. Isto já foi feito? Acredito que não. Por isso, a melhor estratégia, continuo a defender, assim como fizemos em abril de 2006, face à paralisação do processo de identificação, é que uma nova etapa de trabalho antropológico seja realizada, por profissional devidamente credenciado para a tarefa, visando, em campo, complementar e atualizar os dados já produzidos anteriormente, que possa resultar num relatório bem escrito, em consonância com os requisitos da legislação. Novos recursos públicos serão de fato gastos, em função de um primeiro trabalho antropológico que não cumpriu com seus objetivos. Este gasto adicional, apesar de não dever ser de maneira alguma desconsiderado, será bem aplicado caso este novo trabalho atenda as justas demandas feitas pelos Manchineri do Seringal Guanabara há pelo menos sete anos.

 

Não gostaria de entrar na discussão a respeito do profissional Raimundo Tavares Leão, a quem conheço e respeito pessoalmente. Hoje, Raimundo Leão exerce cargo de professor da Faculdade da Amazônia Ocidental (FAAO), algo para o qual o seu diploma de mestre efetivamente contribuiu, além de integrar os quadros da Administração Executiva Regional da Funai em Rio Branco como "técnico em indigenismo". Numa pesquisa na internet, não se vê, contudo, qualquer produção acadêmica dele listada, mas sim vários trabalhos desempenhados como funcionário da Funai ou como representante dessa instituição em fóruns interinstitucionais criados com diferentes finalidades.

 

Me preocupariam, sim, eventuais empecilhos que possam ter sido colocados ao reconhecimento da TI Manchineri do Seringal Guanabara pelo governo do Estado do Acre. Em início do ano passado tramitavam no Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) processos para a aprovação de planos de manejo florestal (leia-se madeireiro) nas Fazendas Petrópolis e Morongaba, terras particulares incrustadas entre a proposta da TI Manchineri do Guanabara, a TI Mamoadate e a Reserva Extrativista Chico Mendes. Sobrevôos e trabalhos de campo, feitos por técnicos do IMAC e da AER-RBR da Funai, constataram que essas duas fazendas incidiam em faixas de 10 km no entorno dessas duas terras indígenas e da unidade de conservação. Pelo que conversei com um técnico do IMAC que trabalhou nestes levantamentos o mais indicado seria a não aprovação dos planos de manejo demandados, face ao que consta do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e às ameaças que uma atividade naquele local representaria às famílias de Manchineri, Jaminawa e seringueiros e agricultores que ali vivem, bem como aos recursos naturais de seus territórios. Posição, aliás, com a qual concordei totalmente à época dessa conversa. Desde então, não tive mais notícias sobre o andamento dos pedidos de aprovação dos planos de manejo madeireiros nessas fazendas. Se estas últimas propriedades pertencem a "amigos" do ex-governador, conforme você ouviu dizer, ou se a regularização da terra indígena teve seu tramitar na Funai de Brasília dificultado por esses interesses, tampouco posso afirmar ou informar. Um fato é que o relatório de identificação e delimitação da Terra Indígena Manchineri do Seringal Guanabara encontra-se ainda pendente, fruto de um trabalho inacabado, pelas razões acima expostas.

 

Por fim, louvo sua preocupação com o avanço da regularização da TI Manchineri do Seringal Guanabara, fruto do seu interesse "pelo destino daquelas matas e da extensa família do cacique Raimundo".

 

Curioso me pareceu, todavia, que a intenção de levar esta preocupação a público, em forma de "denúncia" aos leitores do Correio da Cidadania, tenha decorrido de informações obtidas durante um encontro casual, nas ruas de Belém, com outro membro do grupo técnico, que com você trabalhou na identificação da terra indígena, há mais de três anos; do seu desconhecimento de há quantas andava, neste período, o processo de identificação da terra indígena, porque nunca mais recebeu notícias a este respeito; de que as informações sobre as quais sua denúncia está assentada decorram de uma pesquisa na internet (que, segundo suas palavras, lhe brindou informações "mais sólidas" do que uma mera conversa de rua); de que a denúncia sobre a paralisação deste processo envolva os nomes de antropólogos que há mais de 30 anos, no caso de Terri Aquino, e de 17, no meu, trabalham no Acre; e, ainda, de que nenhuma tentativa de contato tenha sido feito conosco antes de fazer o que você mesmo qualifica como uma "denúncia", de caráter eminentemente público.

 

Trabalhei como coordenador de GT da Funai, junto com Terri Aquino, em três processos de identificação e delimitação de terras indígenas no Estado do Acre. Durante sete anos, período que levou desde a identificação dessas terras até a conclusão de sua regularização, além de escrever os relatórios e os respectivos resumos, fizemos um próximo monitoramento dos processos administrativos dentro da Funai, procurando assegurar o seu avanço nos vários departamentos do órgão, acompanhamos os desdobramentos locais das identificações, visitando as terras indígenas em várias ocasiões, realizando reuniões com as lideranças e famílias indígenas e de ocupantes não índios e com outros atores relevantes (organizações e associações indígenas, sindicatos, Prefeituras), e, assim, produzimos novas informações, destinados à Funai, procurando informar e cobrar o avanço dos respectivos processos. Da mesma forma, procuramos agir nos últimos anos em relação a vários outros processos administrativos de regularização de terras indígenas no Estado do Acre, onde eu, pessoalmente, tenho andado com menor regularidade nos últimos três anos, por estar dedicado ao meu curso de doutorado.

 

As atividades e as preocupações de profissionais (antropólogos e mesmo ambientalistas) envolvidos em processos de identificação de terras não se encerram, a meu ver, com a entrega dos relatórios: bons relatórios, não custa ressaltar novamente. Essa parte você afirma ter feito. O acompanhamento dos processos administrativos e sociais, tanto nas instâncias de vários órgãos do estado brasileiro, bem como nos planos estadual e local, devem fazer parte desse compromisso, profissional e ético, que assumimos ao nos engajar em trabalhos como esses, mesmo que na condição de consultores PNUD, pagos com dinheiro da cooperação internacional.

 

Nunca é tarde para começar. Os Manchineri liderados pelo cacique Raimundo (bem como os não índios que vivem na área proposta) há mais de quatro anos esperam por respostas e resultados concretos de um trabalho de identificação feito por um grupo técnico da Funai, do qual você participou. Propostas no sentido de fazer este processo avançar, nós procuramos fazer em nosso relatório, assim como em estudos realizados para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado e em artigos publicados na imprensa.

 

Sugiro que você faça outra proposta melhor (de preferência sem novos gastos de recursos financeiros, do erário público ou da cooperação internacional). Para tal, recomendo, procure primeiro se inteirar, junto à Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF) e à Coordenação Geral de Identificação e Delimitação (CGID), da Funai, em Brasília, a quantas anda o processo de identificação da TI Manchineri do Seringal Guanabara. Atitude que, garanto, será bem mais esclarecedora do que uma conversa de rua e uma pesquisa no Google, bem como mais produtiva do que formular, sem o devido conhecimento de causa, denúncia pública contra dois antropólogos, que não participaram da identificação daquela terra indígena, mas que tem procurado dar visibilidade, de diferentes formas, à necessidade de fazer avançar a sua regularização.

 

Na esperança de ter respondido suas inquietações a respeito das "intrigantes" afirmações de nosso texto, despeço-me cordialmente. Peço, ainda, que, caso julgue informativo, faça chegar este texto ao mesmo Correio da Cidadania. Espero que, junto com sua "denúncia", ele possa contribuir para o avanço do processo de regularização da Terra Indígena Manchineri do Seringal Guanabara e para o esclarecimento dos fatos e interesses que levaram à sua total paralisação até o presente momento. Da minha parte, procurarei fazer minha própria divulgação.

 

Atenciosamente,

 

Marcelo Piedrafita Iglesias

 

***

 

Caro Marcelo,

 

Fico contente em com a sua opinião de que o artigo “A Terra Indígena Manchineri do Guanabara no Governo da Floresta” pode contribuir para o avanço do processo de regularização daquela terra. Escrevo aproximadamente um artigo a cada três semanas para esta coluna do Correio da Cidadania, sobre temas ambientais, que divido no com o jornalista Danilo Pretti Di Giorgi e o biólogo Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, e dificilmente recebo um retorno tão otimista sobre as conseqüências deste trabalho. Então, não entendo suas críticas ao meu “método de trabalho”. Realmente é curiosa a sorte, que colocou o professor Leão no meu caminho (depois de tanto tempo) com a lamentável notícia do estado de paralisação deste processo, bem quando eu procurava um tema para o texto da semana. Sem dúvida foi muito esclarecedora a busca no Google que me levou ao artigo de vocês. Possivelmente mais esclarecedora (e certamente mais prática) do que ligar para a Diretoria de Assuntos Fundiários e Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da FUNAI, em Brasília. Você certamente sabe do estado de confusão e paralisação quase que completa da FUNAI, capaz levar qualquer cidadão normal à loucura (praticamente desisti do brigar por umas diárias que me devem por outro trabalho que fiz, posteriormente, para o Órgão Indigenista).

 

Além do mais, não acho que os nossos leitores estariam interessados em detalhes específicos destes trâmites burocráticos. Apesar de ter ficado contente com o seu contato, não acho que eu deveria necessariamente ter consultado-os antes de escrever o artigo, uma vez que restrinjo meus comentários a pontos claramente colocados no texto de vocês. Apesar de ter apontado (e tentado refutar) elementos que justificariam o estado do processo de regularização daquela terra, não cheguei a dizer em meu artigo que você e Terri Aquino se colocaram contra a criação da T.I. Manchineri do Guanabara. Está claro que este não é o caso. Gostaria de saber dos erros que inviabilizaram a aprovação do relatório geral de identificação e delimitação (que nunca cheguei a ver). Gostaria também de ter podido colaborar para que os tais fossem eliminados. Eu não diria que “nunca é tarde para começar” porque as transformações da paisagem naquela região já são velozes e os desmatamentos tendem a se acelerar, mas certamente ainda não é tarde demais para tentar. De minha parte, coloco meu relatório ambiental a disposição do novo coordenador e estou à disposição para o que puder fazer a distância, pela Internet.

 

Um abraço,

 

Rodolfo

 

 

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